A Condição Mínima
Dom Lourenço Fleichman OSB
A recente visita de Dom Bernard Fellay, superior da Fraternidade S. Pio X, ao Papa Bento XVI levantou algumas interrogações, algumas curiosidades. Alguns esperavam que algo de concreto acontecesse, um início de acordo. Não atinaram que a visita nada mais era do que uma prática normal, de cortesia mútua; o bispo responsável por uma obra como a Fraternidade, acusado injustamente de ser cismática, vem pessoalmente mostrar ao Papa que não há cisma, apesar de haver, sim, muitos pontos de afastamento, de discordâncias, causadas pelas novidades, pelos graves erros de Vaticano II. Mas diante desta movimentação dos espíritos desses últimos dias, um leitor me perguntou qual seria a condição mínima para que houvesse, enfim, um acordo entre o Vaticano e a Fraternidade São Pio X, depois deste primeiro encontro do Papa com Dom Fellay.
Como avaliar? Quais os critérios para se definir um mínimo que permita alcançar este entendimento com o Vaticano? Seria a liberação da missa de S. Pio V a todos os padres, sem necessidades de permissões? Ou a anulação do ato de excomunhão? Estas foram as duas condições colocadas pela Fraternidade ao Card. Ratzinger, no ano 2000 para um início de conversa. Não creio que sejam "condições mínimas" para o acordo. Seriam, antes, atitudes de boa vontade da parte do Vaticano, coisa que até hoje não ocorreu.
O que aconteceria se fosse liberada assim a missa? Se nossa perspectiva fosse a de certos "conservadores", deveríamos considerar que o aumento das missas tradicionais levaria a um esvaziamento das nossas capelas, pois muitos diriam: se podemos ter a missa tradicional com Roma, porque tê-la sem Roma? Mas devemos constatar que esta dialética já existe e as capelas não se esvaziaram. Não deixa de ser curioso que em várias dioceses onde há missas da Fraternidade S. Pio X ou grupos afins, se tenha iniciado uma missa tradicional "oficial". Rio, Niterói, São Paulo, Santa Maria, Belo Horizonte. E eu pergunto: - porque não se esvaziaram as capelas da Fraternidade? Porque não é só a missa que nos distancia da Igreja de Vaticano II. Vejam o que diz o jornalista italiano Vittorio Messori, no jornal Corriere della Sera de 27/8: "Não se trata aqui apenas de liturgia em latim: existe uma eclesiologia e, com ela, uma teologia que hoje diverge".
Na nossa perspectiva, que não é a destes neo-conservadores, a multiplicação das missas de S. Pio V, com ou sem um acordo com Roma, poderia induzir os fiéis a considerar que tudo está resolvido, ficando de lado o mais importante deste combate de quarenta anos, que é a defesa da fé, diminuída e mesmo destruída em todos os poros da vida da Igreja. O que nos distancia de modo tão radical do Vaticano II é a essência do catolicismo, como dizia Gustavo Corção. É o que diz também o superior da Fraternidade S. Pio X para o distrito da Itália, Padre Nely, citado pelo mesmo Messori: "Não seria possível para nós deixar de denunciar os erros. Nosso papel é o de vigiar para que a ortodoxia seja respeitada".
Logo, devemos concluir que a liberação da Missa não é uma condição mínima para um acordo. A questão da excomunhão, por seu lado, não tem peso para ser esta condição visto que ela só foi colocada por Dom Fellay a João Paulo II para que seja devolvida a honra dos defensores da fé, manchada por este ato jurídico-disciplinar sem fundamento no direito canônico (cf. tese de doutorado do Pe. Gerald Murray)
Examinando a trajetória dos grupos tradicionais que fizeram o acordo com o Vaticano, constata-se que todos eles, quer se trate dos acordos de 1988 quer se trate dos padres de Campos, em 2002, tiveram que dar alguma coisa em troca, pelo direito de celebrar a missa tradicional ou de serem erigidos em abadias, administrações etc. Tiveram que aceitar Vaticano II, seus ritos, seus santos, sua missa. Todos eles mudaram bruscamente de linguagem e de atitude diante de tudo o que o Concílio e o pós-Concílio produziu. Hoje, todos sabem, a Fraternidade São Pedro já não existe tal como surgiu, em 30 de junho de 1988. A intervenção do Vaticano no ano 2000 impôs novos chefes e novas práticas. No Barroux, a mesma coisa aconteceu, de modo talvez mais ameno, mas o atual jovem abade deixou claro que ali as duas missas são igualmente respeitadas e celebradas. Em Campos já não causa nem mais escândalo as fotos de Dom Fernando Rifan concelebrando a missa nova, assim como a aceitação total de toda a "espiritualidade" do Vaticano, que seja o novo Rosário, ou a devoção ao liberal Escrivá de Balaguer.
Parece-me, portanto, claro que a condição mínima para um acordo é que não haja, com a Fraternidade, a duplicidade que vemos nos acordos anteriores. Tanto Dom Gerard Calvet, como os padres de S. Pedro ou os padres de Campos repetiram incansavelmente que estavam sendo aceitos como eram, "sem contra-partida". E isso era falso. Era falso porque os agentes do Vaticano foram dúbios ou era falso porque os padres e religiosos foram dúbios com seus fiéis? O Cardeal Mayer foi claro quando propôs o acordo ao Barroux, em 1988. Disse que Dom Marcel Lefebvre não poderia mais pisar no Mosteiro de Santa Madalena, diante de um Dom Gerard que tentava de todos os modos esquivar-se da questão. E Dom Fernando Rifan? O que há de mais dúbio do que os três meses passados em Roma, possíveis promessas não confessáveis, possíveis concelebrações não confirmadas, antes daquelas que conhecemos? O que há de mais dúbio do que a tentativa de dividir o pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer como se o grande defensor da fé fosse instável e incoerente em suas posições doutrinárias, como está sendo Dom Rifan e seus padres?
O fato é que só há um caminho para a reconciliação e este caminho me parece cheio de muitos e complexos obstáculos: o Vaticano não poderá exigir de Dom Fellay e da Fraternidade que mude seu discurso, que altere o tom de suas críticas à obra nefasta e herética de Vaticano II. Propor à Fraternidade o mesmo esquema de acordo já vivido me parece ilusório; pretender que a Fraternidade venha a aceitar a missa nova, mesmo quando "rezada corretamente", me parece ingênuo e inútil. A doce firmeza com que os bispos da Fraternidade mantém a exigência de um catolicismo totalmente verdadeiro e tradicional é a prova da continuidade, da perseverança, da presença espiritual de seu fundador, o venerado Dom Marcel Lefebvre.
Parece-me ilustrar bem estas considerações o que escreve, em mais uma citação, Messori: "o distanciamento teológico se agravou tanto nas últimas décadas que, humanamente falando, uma cura total da fratura parece impossível. Qualquer que seja a solução proposta pelos canonistas (prelazia pessoal, administração apostólica, ordem religiosa etc), os discípulos de Mons. Lefebvre não poderiam viver numa espécie de Igreja paralela, ignorando o que se produz em volta dela". Ora, para evitar este entrave é que os conservadores que fizeram o tal acordo com o Vaticano agem como se na Igreja existissem "guichês" para todos os gostos e necessidades: guichê da TL, guichê da RCC, guichê da Opus Dei, guichê de Taizê e... guichê da Tradição. Estão aí, ainda, os ecos da última JMJ para provar. Ecos, aliás, dissonantes e agressivos da música rock, pop, gospel, e protestante, misturadas ao lindo gregoriano do guichê da Tradição. Mas é justamente o que não passa pela cabeça dos bispos da Fraternidade, aceitar que se rebaixe assim a santidade da Igreja, que se diminua de modo tão iníquo a fé católica.
Cabe diante da situação uma verdadeira esperança de milagre. Cabe um esforço de orações para que a graça divina trabalhe nos corações e faça as autoridades devolverem a todos os fiéis o acesso à verdadeira Igreja Católica, esta que é prisioneira do autoritarismo e da marginalização, esta que é isenta de todas as manchas e rugas do mundo que se vieram grudar nela depois do Concílio, como um câncer espiritual que a devora.