Carta de Mgr. Bernard Fellay ao Cardeal Castrillon Hoyos

Eminentíssimo senhor,

O olhar posto no Sagrado Coração, no dia de sua festa e segundo seus próprios desejos, imploro a Sua misericórdia que digne-se marcar com sua luz e sua Caridade as linhas que seguem.

O jesuíta Mgr. Pierre Henrici, então secretário da Communio, dizia em uma conferência sobre as reflexões do Concílio, que no Concílio Vaticano II duas tradições teológicas haviam se chocado, que essencialmente não podiam compreender-se.

Vossa carta de 7 de maio causou um sentimento semelhante, de incompreensão e de decepção. Temos a impressão que ela  nos impõe um dilema: ou entramos na plena comunhão, e então devemos nos calar diante dos graves males que ferem a Igreja, não havendo jaula dourada nos é imposta uma mordaça; ou ficamos “de fora”. Nós recusamos este dilema. Pois, por um lado, nunca abandonamos a Igreja, por outro lado, nossa situação atual, certamente desconfortável, não é o resultado de uma ação culpável nossa, mas a conseqüência de uma situação calamitosa dentro da Igreja, contra a qual tentamos, mal ou bem, nos proteger. As diferentes decisões tomadas por Mgr. Lefebvre foram ditadas pela vontade de não perder a fé católica e de sobreviver no meio de uma destruição universal que engloba Roma também. Chamamos a isso “estado de necessidade”.

Se queremos evitar o impasse ao qual conduz vossa carta, seria preciso mudar profundamente as perspectivas, o status quaestionis. Com efeito, para vossa Eminência,

1-     Nós estamos em ruptura de comunhão.

2-     As razões dadas para justificar nossos atos, inclusive as sagrações, seriam totalmente insuficientes. Pois a Igreja sendo santa e o magistério sempre assistido pelo Espírito Santo, as falhas que deploramos seriam inexistentes ou abusos limitados. Nosso problema viria de uma visão da história da Igreja e de suas crises, muito limitadas e rígidas, que nos impediria de captar a evolução homogênea e justificada de diversas adaptações ao mundo de hoje operadas pelo Concílio e o magistério seguinte.

3-     Roma abre suficientemente seus braços ao nos oferecer a estrutura  que nos propôs. É abusivo pedir algo a mais, talvez mesmo ofensivo para com a Santa Sé, pelo fato de Roma ter tomado essa iniciativa. Não nos será dado nenhuma garantia preliminar, principalmente a Missa, que causaria confusão dentro da Igreja.

Do nosso lado penso poder afirmar, seguindo os papas Pio XII e Paulo VI, que a Igreja encontra-se  em situação literalmente apocalíptica. É irrecusável o fato de que  a desordem na Hierarquia católica – o Cardeal Seper dizia: “a crise da Igreja é uma crise dos bispos” – as lacunas, os silêncios, as induções, as tolerâncias do erro e mesmo os atos positivos destruidores, encontram-se até mesmo na Cúria e, infelizmente, no próprio Vigário de Cristo. São fatos públicos e constatáveis pelo comum dos mortais.

Afirmar a existência desses fatos não é contraditório com a fé na Santidade da Igreja nem na assistência  do Espírito Santo. Mas tocamos aqui no mistério da Igreja, da conjunção e da ordenação do elemento divino e do humano no Corpo Místico. Para ficar na verdade da realidade é preciso ao mesmo tempo manter as afirmações da fé e a constatação dos fatos.

Na afirmação da infalibilidade do Soberano Pontífice, o Concílio Vaticano I estabeleceu explicitamente um limite à assistência do Espírito Santo: “O Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de Pedro para que façam conhecer, sob sua revelação, uma nova doutrina, mas para que, com sua assistência, eles guardem santamente e exponham fielmente a Revelação transmitida aos apóstolos, ou seja, o depósito da fé” Denzinguer Hünermann, n. 3070.

Aderimos, evidentemente, de todo coração, aos parágrafos seguintes de Pastor Aeternus assim como a Dei Filius.

Mas é precisamente aqui que estamos no mais profundo dos mistérios atuais. São justamente as novidades da nova teologia, condenadas pela Igreja sob Pio XII, que aparecem em Vaticano II. Como pode ser que todos os grandes nomes do Concílio, os "peritos" teólogos, fossem todos condenados por sanções sob Pio XII? De Lubac, Congar, Rahner, Courtney-Murray, Dom Beaudoin (morto pouco antes do Concílio). E indo um pouco além, Blondel, Teilhard de Chardin...

Querem nos fazer crer, hoje,  que estas novidades seriam um desenvolvimento homogêneo com o passado. Elas foram condenadas, ao menos nos seus princípios. O próprio cardeal Ratzinger chama Gaudium et Spes de contra-Syllabus (Theologische Prinzpienlehre, p. 398, Erich Wewel Verlag, München, 1982). É preciso, necessariamente, escolher.

O fato dessas doutrinas serem, depois, sancionadas por um Concílio que não se considera dogmático, não é suficiente para as limpar. O selo de um voto não torna um  erro em verdade infalível: dá fé disso a declaração de Mgr. Felici, no Concílio, sobre a questão da infalibilidade deste. (Notificação de 16 de nov. 1964, DH 4350-4351)

Além disso, o problema do Concílio não está, em primeiro lugar, do lado das interpretações individuais, ele vem, além disso, da sua falta de precisão nos termos, suas ambigüidades voluntárias (segundo um dos peritos do Concílio), que  permitem diversas interpretações.

Vem, também,  de certas interpretações dadas pela Santa Sé ela própria.

Se seguirmos as indicações dela, chegaremos em Assis, na Sinagoga, e nas florestas sagradas do Togo. "Ver Assis à luz do Concílio" - João Paulo II, Audiência  de 22 de agosto de 1986.

Como explicar, à luz da fé católica, esta  frase chave da teologia de João Paulo II, que esclarecem muitas passagens incompreensíveis, como:
-         "o caminho da Igreja é o homem"
-         ou ainda, Gaudium et Spes 22: "No Espírito Santo, cada pessoa e cada povo tornaram-se,  pela cruz e a ressurreição do Cristo, filhos de Deus, participantes da natureza divina e herdeiros da vida eterna." (João Paulo II, Mensagem aos povos da Asia, 21 de fevereiro de 1981, DOC 1894, de 15/3/1981, pag. 281)

Um magistério que contradiz o  ensinamento do passado, (por exemplo, o ecumenismo e Mortalium Animos), um magistério que se contradiz ele próprio, (ver a declaração conjunta sobre a justificação e a nota que a precede, do Cardeal Cassidy, ou  a condenação e o aplauso do termo "igrejas irmãs".  Eis a questão lancinante.

Esta crise magisterial coloca um problema quase impossível de ser resolvido em termos práticos. Como discernir corretamente entre o que é verdadeiramente  magistério e o que é apenas aparência?

E o pesadelo estende-se da Cúria Romana aos bispos residenciais. Eis dois exemplos recentes, entre milhares:

Quando Mg. Tauran declara, nas Filipinas, dia 4 de junho de 2001: "Seria errado considerar o fiel de outras religiões como alguém a ser convertido. Ele é antes, uma pessoa que deve ser compreendido, deixando a Deus o papel de esclarecer sua consciência. As religiões não devem entrar em competição umas com as outras, mas devem, antes, ser como irmão e irmã que caminham lado a lado para construir canais de fraternidade, construindo um mundo bonito, no qual seja possível viver e trabalhar" - é ele fiel à fé católica?

Quando o Cardeal Kasper declara em Nova York: "A antiga teoria da substituição não é mais seguida, depois de Vaticano II. Para  nós, cristãos de hoje, a aliança com o povo judeu é uma herança viva... Não pode haver uma simples co-existência entre as duas alianças. Os judeus e os cristãos, guardadas suas diferenças específicas respectivas, são intimamente ligados uns aos outros. A Igreja crê que o judaísmo, ou seja, a resposta fiel do povo judeu à aliança irrevocável de Deus, é salvífico para eles, pois Deus é fiel  a suas promessas" - exprime ele a fé católica, é fiel a São João, a São Paulo, a Nosso Senhor, ele próprio?

Ora, esses dois prelados são um, íntimo colaborador do Papa, o outro, príncipe da Igreja, recentemente elevado à púrpura cardinalícia, eleitor do futuro Vigário de Cristo. É impossível estar em comunhão com eles. Eles não têm mais a fé.

Poderíamos citar dezenas e  declarações episcopais de mesmo teor. O que fazer quando os guardiões da fé fraquejam? Segui-los cegamente? Não merecem eles os qualificativos que Santa Catarina de Sena atribuía a certos príncipes da Igreja da época?

Declarar isso não nos trará a simpatia da Santa Sé. Mas nós temos preocupações mais bem graves do que esta. Milhares e  milhões de fiéis católicos que abandonam a fé e se condenam por causa dos erros de Roma, eis nossa preocupação. "Quicumque vult salvus esse, ante omnia opus est, ut teneat catholicam fidem: nisi quisque integram inviolatamque servaverit, absque dubio in aeternum peribit. - Quem quer se salvar, antes de tudo, deve guardar a fé católica: se alguém não a conservar íntegra e inviolável, sem dúvida se condenará para sempre" (Símbolo de Santo Atanásio, DH 75)

É preciso distinguir Roma e Roma. Tentamos fazer isso.

As palavras de Pio XII, quando ainda era Secretário de Estado de Pio XI, ressoam em nossos ouvidos: "Suponha, caro amigo, que o comunismo seja apenas o órgão mais visível da subversão contra a Igreja e contra a tradição da Revelação divina, então vamos assistir à invasão de tudo o que é espiritual, a filosofia, a ciência, o direito, o ensino, as artes, a imprensa,a literatura, o teatro e a religião. Sou obcecado pela mensagem da Virgem à pequena Lúcia de Fátima. Essa obstinação da Boa Senhora diante do perigo que ameaça a Igreja é um aviso divino contra o suicídio que representaria a alteração da fé, na sua liturgia, sua teologia, sua alma....Ouço à minha volta inovadores que querem desmantelar a Capela Sagrada,destruir a chama universal da Igreja, rejeitar seus ornamentos, dar-lhe o remorso do seu passado histórico. Pois bem, caro amigo, tenho a convicção que a Igreja de Pedro deve assumir seu passado ou ela cavará sua própria cova....Virá um dia em que o mundo civilizado renegará o seu Deus, em que a Igreja duvidará como Pedro duvidou. Ela será tentada de crer que o homem tornou-se Deus, que seu Filho é apenas um símbolo, uma filosofia como tantas outras, e nas igrejas os cristãos procurarão em vão a lâmpada vermelha onde Deus os espera" (Mgr. Roche e P. Saint Germain - Pie XII devant l'histoire, pag. 52-53)

A seu amigo Jean Guitton, Paulo VI dizia, no essencial, que existe na Igreja um pensamento de tipo não católico. Pode acontecer que ele prevaleça, mas nunca será a Igreja católica (Jean Guitton, Paulo VI secreto)

 

Diante dessa catástrofe como devem reagir os católicos? É-lhes permitido reagir? Nós seguimos, simplesmente, o conselho de São Vicente de Lerins no seu Commonitorium (nº3): "O que fará o cristão católico se uma parcela da Igreja vem a se separar da comunhão da fé universal? Qual outro partido tomar senão o de preferir o corpo são no seu conjunto,  ao membro corrompido pela gangrena? E se um novo contágio tenta envenenar, não apenas uma pequena parte da Igreja, mas toda ela de uma vez? Ainda assim sua principal preocupação será de se ligar à antiguidade que, evidentemente, não pode mais ser seduzida por alguma novidade enganadora."

Eis um status quaestionis de onde seria preciso iniciar uma busca de solução. Nós somos apenas um sinal de marcação da terrível tragédia em que se encontra a Igreja, talvez a mais terrível de todas até aqui, onde não apenas um dogma, mas todos, são atacados, de dentro das  universidades pontifícias até os bancos das escolas maternais.

O problema litúrgico é parecido. Aliás, os fiéis são forçados a procurar eles mesmos uma liturgia conveniente. Eles não podem mais ir simplesmente à sua paróquia. É um fato que não se limita aos tradicionalistas. Daí decorre uma grande transformação no mundo católico, em todos os casos, no antigo mundo católico: a desagregação da vida paroquial; o crescimento de movimentos eclesiais são devido, em grande parte, ao fato que os fiéis não encontram mais o alimento de que necessitam para viver da fé e da graça em suas paróquias. A nova liturgia não é inocente neste fenômeno. Não podemos ignorar este enorme problema. De todo coração, de toda nossa alma, queremos trabalhar na restauração da Igreja, mas não podemos agir como se tudo fosse bem ou que não passam de detalhes.

Estamos prontos para testemunhar de nossa fé em Roma, mas não podemos chamar de bem o que é mal, de mal o que é bem.

Dignai-vos, Eminência, desculpar-me pelo tamanho desta carta, por seu aspecto de generalidades, por algumas afirmações que precisariam ser mais desenvolvidas. Estamos inteiramente dispostos a continuar este trabalho, se Roma assim quiser...

Queremos continuar católicos, queremos conservar toda nossa fé sem nada abandonar, eis a causa de nosso combate, de nosso sofrimento, das oposições que sofremos. Estamos persuadidos que não causamos mal à Igreja ao agir assim, mesmo se as aparências são contra nós.

Queira aceitar, Eminência, a expressão de meus sentimentos devotado e religioso in Cordibus Jesu et Mariae.

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