FRATERNIDADE SACERDOTAL SÃO PIO X
CH-6113 Menzingen- Suiça
CARTA DO SUPERIOR GERAL AOS AMIGOS E BENFEITORES
5 de maio de 2001
Caros amigos e benfeitores;
Essa carta está chegando às
suas mãos de certa forma tarde. Mas não queríamos nos dirigir a vocês antes
que pudéssemos transmitir-lhes as notícias do modo mais fiel possível a
respeito de nossas negociações com Roma. Muitos boatos estão circulando, um
grande número deles falsos. Também estamos conscientes do quanto está em jogo
e o quão decisivo tudo isso pode resultar para o nosso futuro. Vamos nos debruçar
sobre os vários aspectos da questão.
Da nossa parte, temos sido
marginalizados pelas autoridades de Roma, para não dizer rejeitados, por causa
da nossa recusa em aderir ao Vaticano II e as reformas pós-conciliares, por razões
de doutrina.
Quando dizemos que recusamos
o Concílio, não queremos dizer com isso que rejeitamos totalmente, ao pé da
letra, todos os documentos do Concílio os, quais em grande parte, consistem
numa simples repetição do que já foi dito no passado. O que nós atacamos é
a nova linguagem, introduzida em nome do Concílio "pastoral". Esta
nova linguagem, embora vaga e muito imprecisa, serve de canal para outra filosofia
que é a base da nova teologia. Ela rejeita qualquer modo estável de ver
a essência das coisas para se basear, ao contrário, no estado de sua existência
em dado momento, o que naturalmente está sujeito à mudanças, variações e
que torna muito difícil a apreensão das coisas, na medida em que variam.Como
mudança e movimento fazem parte de todas as coisas vivas, então as mudanças
existirão também para a Igreja. Dogmas até então intocáveis tornaram-se
passíveis de correção e melhoramentos... foram relegados ao tempo em que
foram promulgados como se tivessem cessado de ser obrigatórios na medida em
que o tempo avança. Insistir numa compreensão desses dogmas no mesmo sentido e
mesmo significado que eles sempre foram compreendidos tornou-se coisa do passado
[regra de interpretação dos dogmas: in eodem sensu eademque sententia]. É
grande a tentação de fazer com que o particular, a pessoa, se torne
absoluto...enfim, o homem é colocado no centro e Deus é posto de lado. Desponta
assim uma nova religião.
Os modernistas são espertos
o bastante para evitar falar em oposição. Eles
apresentam tudo isso como se fosse o enriquecimento de uma pobreza agora superada
pelos novos conceitos. Quase todas as palavras -
"redenção", "graça", "revelação",
"sacramento", "mistério" adquiriram um novo significado.
Na vida da Igreja, este
processo é particularmente marcante no caso da nova liturgia, uma coreografia toda centralizada no homem, não mais
dirigida hierarquicamente a Deus pela mediação do padre. A palavra "sacrifício"
não mais é mencionada, sendo substituída por "Eucaristia", uma
palavra que antes era aplicada apenas à hóstia consagrada. Portanto a ênfase
está na refeição e não no sacrifício.
Vemos nessas mudanças a origem do colapso atual que
sofre a Cristandade e a
causa da presente crise na Igreja Católica. A Liberdade Religiosa é radicalmente
incapaz de barrar a onda de secularização que varre o mundo moderno, um mundo sem Deus, fazendo de si mesmo o próprio deus. Pois uma vez que cortou
a dependência da criatura de seu Criador para melhor afirmar sua autonomia e liberdade, não existe mais base para sua intrínseca e absoluta
dependência de Deus. Desse modo para salvar a pessoa humana do totalitarismo do
estado moderno, a criatura buscou estabelecer que a pessoa e sua liberdade são
superiores a um ponto que não podem mais reconciliar sua verdadeira e real
liberdade com a sua absoluta dependência de Deus. Então necessariamente, o
pecado como a desgraça da criatura se rebelando contra seu Criador, não mais
é compreendido. A responsabilidade da criatura se torna muito vaga e a Redenção
como resposta de Deus àquela desgraça é totalmente invertida.
Toda a vida do homem se
tornou muito fácil e cômoda, os mandamentos de Deus são relegados ao
esquecimento, toda a disciplina, rigor, ascese, austeridade e renúncia
foram desaparecendo. Uma vez encarada assim a grandeza do ser humano, sua relação com seu Deus, sua religião,
passa a ser vista de maneira diferente. Esse novo ponto de vista centralizado na pessoa e em seus atos
busca ser tão positivo e tal é o esforço de descobrir em toda parte as "sementes
do Verbo", que a idéia de que todo mundo está salvo
ou será salvo se disseminou e implantou-se na mente de não poucos católicos.
E assim todas essas celebrações ecumênicas e declarações inter-religiosas
apenas corroboram essa nova visão da vida, fundamentando um impressionante
indiferentismo religioso, pelo menos de fato.
Portanto, da nossa parte,
nossa firme adesão a tudo que a Igreja sempre ensinou até há pouco tempo atrás,
a tudo que sempre guiou a vida cristã é visto agora como antiquado,
ultrapassado,
fora de moda,
A vida cristã da Sociedade
São Pio X está produzindo inegáveis frutos de salvação, como até mesmo
Roma reconhece. Que exista uma grave crise na Igreja, uma vertiginosa queda na
pregação da doutrina, uma falta de interesse da parte do povo cristão, isso
até mesmo as autoridades romanas o reconhecem. E isso é um dos motivos da
aproximação que eles tentam agora; se Roma nos convoca
como bombeiros para ajudar a debelar o incêndio, nós não recusaremos nossa
ajuda, mas antes de nos envolvermos com as chamas, é razoável exigirmos que
fechem a canalização do gás que é a fonte de todo o incêndio.
Mas, no fundo, as
autoridades romanas vieram a nós por outros motivos.
Da parte de Roma, eles
atualmente estão preocupados, antes de mais nada, em estabelecer a unidade.
Todos os esforços ecumênicos vão nessa direção. Cada vez mais atitudes
audaciosas,
chocantes e escandalosas se repetem na tentativa de reunir cristãos desunidos e
divididos. A determinação em superar diferenças doutrinárias por atos litúrgicos
em comum expressa claramente esse novo esforço ecumênico. Não podemos deixar
de pensar que eles desejam relativisar as questões das idéias em proveito das
questões da vida. Em todo caso existe um desejo
explícito de superar diferenças doutrinárias para se unir na ação. E esse
parece ser o motivo do Vaticano ter se aproximado de nós no último outono.
Nos foi oferecida uma solução
prática que não seria sustentada pelos pontos em disputa. Roma nem nega que
existam pontos a serem discutidos nem se nega a lidar com tais questões mais
tarde, mas apenas nos convida a "re-entrar no rebanho" sem
demora. Como um sinal de boa vontade, nos ofereceram uma solução por si mesma
aceitável. De fato uma solução que nos conviria perfeitamente, embora de
um ponto de vista puramente prático.
No entanto tivemos que recusar
essa oferta pelas seguintes razões: a história da Fraternidade São Pio X mostra o quanto nós somos um sinal de contradição, o quanto nossa existência
levanta violentas e até mesmo odiosas reações por parte de muitos católicos,
principalmente da hieraquia. A atitude de muitos bispos que estão abertos a
tudo quanto é tipo de ecumenismo por um lado, mas que por outro lado nos tratam
com uma dureza sem nome é profundamente contraditória.
Sofremos essa situação
como sofrem aqueles que passam por esse mesmo tipo de divisão no seio de suas
próprias famílias, mas a solução nunca vem por um simples acordo prático.
Carregamos a contradição sem que seja essa a nossa
intenção e um acordo prático não mudaria muito essa situação fundamental.
A solução está em outro lugar. No fundo, Roma não
entende nossa atitude com relação à Missa Nova e as reformas conciliares.
Roma vê nossa atitude como a manifestação de uma mente fechada e rígida.
E toda vez que
tentamos tocar no cerne da questão deparamo-nos contra uma parede: não nos é permitido questionar as reformas do Concílio. Poderiam até
nos permitir um certo grau de críticas, mas não acusações tão claras e
graves como nós continuamos fazendo.
Em outras palavras, se nós
aceitamos a solução de Roma hoje nos encontraremos lutando exatamente contra
os mesmos problemas amanhã.
Da nossa parte, nós somos e queremos permanecer católicos. Nossa aparente separação de Roma é algo de menor importância quando comparada a um problema bem maior que sacode a Igreja e do qual nós somos, sem o querer, um sinal visível. Para Roma, acomodar a questão da aparente separação é de importância primordial e toma prioridade sobre qualquer outra coisa. Questões doutrinárias poderiam ser conversadas mais tarde. Por causa dessa busca insistente da unidade, Roma de fato mudou sua posição em relação a nós. Eles estão buscando uma solução, mas no que nos diz respeito eles estão ignorando o ponto principal. Pois certamente nós desejamos ver essa crise chegando a um final feliz. Certamente desejamos parar de nos opor à Roma, mas isso exige uma diferente abordagem da questão.
O fracasso de Roma em
compreender nossa posição é tal que se hoje nós aceitássemos a sua
proposta, amanhã teríamos que nos submeter exatamente ao mesmo tratamento que
recebeu a Fraternidade de São Pedro, a qual se encontra amordaçada e é
conduzida devagar mas firmemente para onde não gostaria de ir, ou seja, em direção
ao Vaticano II e sua reforma litúrgica. Se a Fraternidade de São Pedro e
outros movimentos ligados à Comissão Ecclesia Dei ainda conseguem sobreviver o
melhor que podem na medida do possível, eles devem isso à firmeza de nossa
posição.
Certamente que somos gratos
por toda a boa intenção envolvida nessa aproximação de Roma, mas o nosso
julgamento é que a situação não amadureceu a um ponto que possamos seguir
adiante. As razões que nos deram ao recusarem nossas pré-condições, que
seriam sinal de confiança, são significativas: "Isso causaria muita
oposiçao, seria desconsiderar toda a obra do pós-concílio".
Um enorme trabalho está por
se fazer e é por esse motivo que, de forma alguma,
poderíamos rejeitar uma verdadeira discussão com Roma no que diz respeito às
questões de fundo. Todavia, ainda não conseguimos isso.
Nós também nutrimos um
profundo desejo pela Unidade do Corpo Místico. A oração de Nosso Senhor para
"que todos sejam um" é também nosso programa. Todavia, apesar da
prática da caridade ser de grande auxílio para promover a causa da unidade,
apenas quando as mentes estão de acordo na Verdade é que elas conseguem estar
unidas na busca de um mesmo objetivo comum.
Nossos olhos voltados para
o céu, freqüentemente renovamos em nome de todo o clero, a própria súplica
de Nosso Senhor: Pai Santo, santifique-os. Nós nos rejubilamos pelo pensamento de que
um grande número de fiéis de todas as condições preocupando-se vivamente
pelo vosso bem e pelo bem da Igreja, a nós se unem nessa oração. Não nos é menos agradável
saber que existem numerosas e generosas almas, não apenas nos claustros, mas também
em meio à vida secular que, numa contínua oblação, apresentam-se como
vítimas a Deus nessa intenção.
Possa o Altíssimo
aceitar como um doce perfume as suas puras e sublimes orações e que Ele não
despreze nossos mais humildes súplicas; possa o Senhor em Sua Misericórdia e
Providência vir em nosso socorro, nós O imploramos, e que Ele derrame sobre o
clero aqueles tesouros da graça, caridade e de toda virtude escondidos no puríssimo
Coração de Seu Amado Filho"( São Pio X, "Haerent Animo").
Recomendamos vivamente às suas orações, aquilo que sem dúvida vocês já colocaram em suas intenções:
que a Igreja recupere sua verdadeira face, sem rugas, eterna, resplandecente da santidade de
Deus, incendiando toda a terra com o fogo de amor de um Deus que tanto nos amou. Possa Nossa Senhora, que preside tão claramente
ao destino da
Igreja no início desse milênio vos proteger e abençoar a todos, com o Menino Jesus,
"cum prole pia", como diz a Liturgia.
+ Bernard Fellay
Superior Geral da Fraternidade São Pio X.
Na festa de São Pio V