AS “NOVIDADES” NA IGREJA CATÓLICA
Pe. J. Luc Lefèvre
La Pensée Catholique nº 35, 1955
O artigo que vamos ler foi escrito em 1955. Trata de novidades que, já há quinze anos eram introduzidas nos costumes e usos de padres e autores católicos. Isso nos remete ao ano de 1940. Durante a Segunda Grande Guerra, portanto, e talvez motivados pelas atenções voltadas a ela, os inimigos da Igreja começaram um ataque mais aberto, ensinando e difundindo práticas e doutrinas condenadas pela Igreja. Basta lembrar da denúncia feita por Gustavo Corção, no seu livro “O Século do Nada”, de como os dominicanos da Revista Esprit, a partir de 1936, começaram já a espalhar estes mesmos erros.
O autor deste artigo mostra como a atitude do Papa Pio XII foi sempre a do defensor da Fé e da Igreja, e como todos esses erros foram sendo novamente condenados pelo Papa.
O que é chocante para nós, ao ler estas páginas, é a dolorosa constatação da tragédia: Vaticano II foi o Concílio dos inimigos da Igreja. Foi o Concílio que trouxe à tona todos esses mesmos erros. Foi o Concílio que oficializou tudo aquilo que, até então, era condenado pelo Papa.
Da missa nova, banquete sem sacrifício, com o abandono do latim, com as heresias eucarísticas, com a famigerada comunhão na mão, passando pelo erro grosseiro do “sacerdócio dos fiéis”, da concelebração, até chegar no Ecumenismo e nos gravíssimos erros sobre a justificação e a graça ensinados pelo Papa atual, veremos no texto abaixo praticamente um resumo do que foi o Concílio Vaticano II, analisado e condenado antes mesmo de ter início.
Esperamos poder continuar a denunciar teologicamente estes erros, com a publicação da Sinopse de Erros de Vaticano II, realizada pelo jornal SiSiNoNo e, daqui a poucos meses, com a publicação da obra O Reno deságua no Tibre, do padre americano Ralph M. Wiltgen, S.V.D., que conta os bastidores do Concílio, deixando evidente que o espírito que o presidiu já não era mais católico.
Quem não ouviu falar delas nos últimos quinze anos? Em sua maior parte essas novidades entusiasmaram certos meios determinados a não mais permanecer apegados a maneiras de pensar, de rezar e de agir que lhes parecem terem-se tornado inconvenientes às gerações evoluídas do nosso século de progresso. Partindo de círculos fechados, algumas dessas “novidades” foram lançadas em congressos e assembléias e destas, em grupos de fiéis cada vez mais numerosos em todas as dioceses. Os promotores e arautos delas, dispondo de inúmeras revistas e jornais, souberam empreender campanhas de imprensa e mobilizar legiões de jovens em todos os meios. “Tudo novo, tudo belo”! Essas novidades tornaram-se moda. A opinião pública logo se apaixona por tudo aquilo que surpreende, espanta e escandaliza; a juventude gosta de se dedicar a todos os que parecem capazes de abalar os parâmetros “usados” do passado. A querela entre os “antigos” e os “modernos” renasce a cada século a propósito de tudo e de nada. Mas a opinião pública costuma se mostrar severa com aqueles que, antes de se lançarem com a cabeça baixa no movimento da moda e se deixarem assim embalar pela “onda” dos primeiros dias, ocupam o seu tempo para observar, refletir e consultar. Estes ficam sendo os apegados ao passado, os reacionários, os retardatários...
Porém, de fato, essas “novidades” não foram apreciadas em toda parte por todos. Uma ou outra feriu, chocou e afligiu também o bom povo cristão que dificilmente aceita que o tomem por ignorante das coisas da religião. Uma ou outra fez rosnar interiormente os padres de nossas paróquias, os teólogos e também, em grande proporção, fiéis um pouco esclarecidos. Aqui, em numerosas ocasiões, nós nos permitimos examinar de perto aquelas “novidades” que nos pareciam afetar a própria substância da doutrina católica e que nos pressionavam para que as integrássemos no thesaurus ecclesiasticus: se recusávamos ou nos permitíssemos discuti-las éramos postos, aos olhos dos inovadores, como responsáveis por uma “ruptura” dentro da Igreja e por divisões na cristandade.
Quantas são estas “novidades” que fizeram nascer uma literatura tão abundante que invadiu todos os setores? Existe um catálogo delas? Que saibamos, nenhum dos inovadores, até agora, tentou levantá-lo, assim como se redige um Quadro de Honra com os nomes das vitórias de nossos exércitos e dos triunfos da Pátria. Mas alguém, em outro campo, terá tido o cuidado de propor listas dessas “novidades” para denunciá-las, com a esperança de as ver condenadas? Não se tem prova disso fora o que imaginou um fantasista da imprensa moderna. Seja como for não há ninguém, hoje em dia, que possa permanecer na incerteza quanto ao numero delas, sua importância e seu valor. Porque, desde setembro de 1946, a atenção do Santo Padre voltou-se, em muitas ocasiões, sobre essas “novidades” de que se gloria nosso tempo. Que se faça uma coleção das Alocuções, das Mensagens e das Encíclicas aparecidas desde as primeiras advertências feitas em audiências gerais aos RR. PP. da Companhia de Jesus e aos RR. PP. dominicanos até ao discurso de 2 de novembro de 1954 e se terá assim todos os elementos necessários para levantar o catálogo das “novidades” introduzidas na Igreja, uma vez que não há uma só que tenha escapado, de fato, ao exame do Soberano Pontífice[1].
Se nossos artigos, o mais das vezes, se alinham com os julgamentos de S.S. Pio XII, não tiramos disso nenhuma glória. (....) .
Para fazer mais curto este artigo referimo-nos aqui apenas às Encíclicas de 1947 (“Mediator Dei” sobre a Liturgia) e 1950 (“Humani generis” sobre algumas opiniões falsas que ameaçam arruinar os próprios fundamentos da doutrina católica) e também os discursos aos Cardeais, Arcebispos e Bispos de 31 de maio e de 2 de novembro de 1954 (os dois discursos, na verdade, compõem um só) sobre o Magistério da Igreja , seu Sacerdócio e seu Governo.(....)
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Desde as primeiras linhas da Introdução de sua Encíclica sobre a Santa Liturgia, Pio XII fala de sua grave preocupação e de sua dor:
“...a consciência de Nosso cargo Nos impõe acompanhar com atenção esta renovação (litúrgica) tal como alguns a apresentam e velar cuidadosamente para que tais iniciativas não ultrapassem a justa medida e não tombem em verdadeiros excessos.” (Edit. B.P. 1948, pág. 5)
O que muitos não quiseram ver é que as “novidades” no domínio da liturgia derivam necessariamente de princípios errôneos de caráter doutrinal (princípios já velhos ou também novos, pouco importa):
“...Nós assinalamos, não sem preocupação nem sem temor, que alguns são excessivamente ávidos de novidade e se transviam fora dos caminhos da sã doutrina e da prudência. Porque, querendo e desejando renovar a santa Liturgia, eles promovem, muitas vezes, a intervenção de princípios que, em teoria ou na prática, comprometem esta santa causa e, às vezes até as mancham com erros que afetam a fé católica e a doutrina ascética.
A pureza da fé e da moral deve ser a regra principal desta ciência sagrada que é preciso conformar em todos os pontos aos mais sábios ensinamentos da Igreja. É, portanto, Nosso dever louvar e aprovar tudo aquilo que é bom e conter ou censurar tudo aquilo que se desvia do caminho justo e verdadeiro...” (ib. pág. 6)
O culto prestado a Deus pela Igreja deve ser ao mesmo tempo interior e exterior, mas é sobretudo interior. Ora, o elemento exterior tem sido exagerado, às vezes, aqui ou ali, a tal ponto que se o poderia reduzir a um poder mágico:
“...Quereríamos chamar vossa atenção sobre as novas teorias que dizem respeito ao que se chama “piedade objetiva”; pretendendo por em relevo o mistério do Corpo místico, a realidade efetiva da graça santificante e a ação divina nos sacramentos e na missa, aquelas teorias parecem querer diminuir ou mesmo passar em silêncio a “piedade subjetiva” ou pessoal” (ib. pág. 15).
A Igreja tem o dever de defender seus ritos legítimos e de afastar deles tudo o que neles teria sido introduzido de impuro. Pelo que ela não pode tolerar que o “progresso” da liturgia seja abandonado ao arbítrio de pessoas privadas:
“É preciso reprimir a audácia realmente temerária daqueles que, deliberadamente, introduzem novos costumes litúrgicos ou fazem reviver ritos peremptos em desacordo com as leis e rubricas atualmente em vigor...
...Há os que, com efeito, na celebração do augusto Sacrifício eucarístico, se servem da língua vulgar ou transferem a outras épocas os dias de festa ou que, enfim, suprimem dos livros de preces públicas aprovados pela Igreja os textos sagrados do Antigo Testamento porque eles os consideram insuficientemente adaptados ao nosso tempo e também inoportunos.” (ib. pág. 26-27)
Notou-se um apego exagerado a ritos primitivos. A preocupação de se reabastecer nas fontes originais, como se diz, assolou a liturgia como também a teologia dogmática:
“...não é sábio nem louvável reduzir tudo e de qualquer maneira à antiguidade. De modo que, por exemplo, seria sair do caminho reto querer restituir ao altar sua forma primitiva de mesa, querer suprimir radicalmente das cores litúrgicas o negro, excluir dos templos as imagens santas e as estátuas, representar o divino Redentor sobre a Cruz de tal modo que não apareçam os sinais dos sofrimentos agudos que Ele padeceu, repudiar e rejeitar enfim os cantos polifônicos ou a vozes múltiplas, mesmo quando conformes às normas promulgadas pela Sé Apostólica.” (ib. pág. 28)
Quem não reparou que as “novidades” são, o mais das vezes, velhas, velhíssimas coisas errôneas e abandonadas que os homens do progresso procuram, periodicamente, fazer reviver para oferecer algo novo? Quantos “inovadores” esqueceram (ou talvez ignoraram) que eles tiveram predecessores, que Lutero é do século XVI e não do futuro...Os velhos erros têm a vida dura...:
“...Quando se trata de liturgia sagrada, quem quer que pretenda voltar aos ritos e costumes antigos rejeitando as normas introduzidas sob a ação da Providência...esse não seria movido, evidentemente, por uma solicitude sábia e justa. Um modo tal de pensar e de agir faria reviver esta paixão excessiva e malsã pelas coisas antigas que provocou o Concílio ilegítimo de Pistoia e despertou os múltiplos erros que deram origem a este falso Concílio e que dele resultaram para grande prejuízo das almas, erros que a Igreja, guardiã sempre vigilante do “depósito da fé” a ela confiado por seu divino Fundador, reprovou com bom direito” (pág. 28)
A segunda parte da Encíclica trata do Sacrifício Eucarístico. Quantas “novidades” neste domínio, que tanto perturbaram consciências católicas, sobre a participação dos fiéis no Santo Sacrifício da Missa, sobre seu pretenso “poder sacerdotal”...
“Existem pessoas que, aproximando-se de erros outrora condenados (os da Reforma protestante, pelo Concilio de Trento) ensinam hoje que no Novo Testamento a palavra “sacerdócio” designa unicamente as prerrogativas de quem quer que tenha sido purificado no banho sagrado do batismo... Elas crêem que o Sacrifício eucarístico é, no sentido próprio, uma “concelebração” e que os padres deveriam “concelebrar” com o povo presente ao invés de oferecer o sacrifício em privado na ausência de povo” (ib. pág. 35)
“Alguns reprovam completamente as Missas que são ditas em particular e sem assistência, dizendo delas que se afastam da maneira primitiva de celebrar; outros chegam mesmo a afirmar que os padres não podem oferecer a divina hóstia celebrando Missas simultâneas em diversos altares porque, assim fazendo, eles dividem a comunidade e põem sua unidade em perigo.” (ib. pág. 38)
O argumento que tantas vezes ouvimos e lemos é tirado da natureza social do Sacrifício eucarístico, argumento recentemente levantado para tentar legitimar este erro grosseiro:
“...Este Sacrifício, em toda parte e sempre, por sua própria natureza e de modo necessário, tem um papel público e social uma vez que aquele que o imola age em nome do Cristo e dos cristãos dos quais o divino Redentor é o chefe, oferecendo-o a Deus pela Santa Igreja católica, pelos vivos e defuntos. E isso se realiza, sem dúvida alguma, quer os fiéis assistam à Missa quer não assistam, de modo algum sendo necessário que o povo ratifique o que faz o ministro sagrado.” (ib. pág. 39)
Para promover a participação dos fiéis no sacrifício da Missa há vários meios e não um só como pensam os inovadores:
“É preciso notar que, dar a estas condições exteriores uma importância tal que se ousa declarar a falta delas como omissão culpada, por impedir a ação santa de atingir seu fim, é afastar-se da verdade e da reta razão e deixar-se guiar por idéias falsas”. (ib. pág. 43)
A comunhão é um elemento integrante do sacrifício da Missa. Ora, a comunhão do padre basta para a integridade do sacrifício. Os inovadores, também sobre este ponto, esqueceram os erros de Lutero que foram condenados. É preciso reler o texto do Concilio de Trento:
“Se alguém diz que as Missas em que só o padre comunga sacramentalmente são ilícitas e devem, conseqüentemente serem suprimidas, que seja anátema”.
E Pio XII continua:
“Afastam-se, portanto, do caminho da verdade aqueles que só querem atender ao santo Sacrifício se o povo cristão se aproxima da Mesa santa; mais ainda dela se afastam aqueles que, pretendendo que seja absolutamente necessário que os fiéis comunguem com o padre, afirmam temerariamente que a Missa não é apenas um Sacrifício, mas um Sacrifício e uma refeição de uma comunidade fraterna e fazem da Comunhão realizada em comum o ponto culminante de toda a cerimônia.” (ib. pág. 45)
Quantas censuras são dirigidas àqueles que se recolhem em ação de graças de, pelo menos, alguns minutos, sob o pretexto de que estes se entregam assim a uma piedade “individualista”! Os inovadores não admitem – em seu exagero comunitário – que cada um de nós tenha a sua alma a salvar...
“Afastam-se, portanto, da reta trilha da verdade aqueles que, apegando-se às palavras mais do que ao pensamento, afirmam e ensinam que, uma vez acabado o Sacrifício não se tem que prolongá-lo por uma ação de graças... porque isto é apenas uma questão de devoção pessoal e particular que diz respeito a cada um e não ao bem da comunidade.” Ao contrário: “...é preciso que cada um, unido ao Cristo, não interrompa em sua própria alma o cântico de louvores...; mesmo depois que a assembléia dos fiéis tenha sido formalmente despedida, aqueles que comungaram se demorem em uma familiaridade íntima com o divino Redentor... O autor do livro de ouro “Imitação de Jesus Cristo” certamente fala como inspirado e segundo os preceitos da liturgia quando dá este conselho: “Permaneça no segredo e goze de teu Deus porque possuis Aquele que o mundo inteiro não te pode tirar.” (ib. pág. 49)
O que deixaram eles, esses inovadores, de pretender reformar no culto eucarístico? Nem a conservação das Santas Espécies, a adoração da Eucaristia separadamente do Santo Sacrifício, as procissões solenes e a benção do Santíssimo Sacramento. Quereriam fazer de nós protestantes! A Encíclica recorda a razão sólida e firme sobre a qual repousa nosso culto de adoração e acrescenta:
“Estes exercícios de piedade contribuíram de forma espantosa para a fé e a vida sobrenatural da Igreja militante; por este modo de agir ela corresponde de algum modo à Igreja Triunfante que eleva continuamente seu hino de louvor a Deus e ao Cordeiro que foi imolado.” (pág. 51)
Mas houve protesto sobre uma falsa confusão entre o Cristo eucarístico e o Cristo “histórico” :
“Não se deve dizer que o Cristo histórico, como chamam aquele que outrora viveu sobre a terra, e o Cristo presente no Santíssimo Sacramento e Aquele que triunfa gloriosamente nos céus e concede os dons do alto sejam falsamente confundidos no culto eucarístico; bem ao contrário, é preciso afirmar que desta maneira os fiéis atestam e manifestam solenemente a fé da Igreja para quem é um só o Verbo de Deus e o Filho da Virgem Maria que sofreu sobre a Cruz, que está invisivelmente presente na Eucaristia e que reina nos céus.” (pág. 51)
Na terceira parte da Encíclica sobre o Ofício Divino e o ano litúrgico, Pio XII examina outras “novidades” sobre a verdadeira e autêntica natureza da liturgia:
“Como se equivocam tanto os escritores de nosso tempo que, seduzidos pelas aparências de uma mística mais elevada, ousam afirmar que não há que se ocupar com o Cristo histórico, mas do Cristo “pneumático” ou glorioso...Ter-se-ia assim velado o Cristo glorificado que vive e reina pelos séculos dos séculos sentado à direita de seu Pai para substituí-lo pelo Cristo que viveu nesta terra. E alguns chegam a pedir que se suprima nos edifícios sagrados as imagens do Cristo sofredor sobre a Cruz. Ora, estas idéias falsas estão em completa oposição com a doutrina sagrada...” (pág. 60)
Na quarta parte são dadas diretivas pastorais sobre outras formas de piedade não estritamente litúrgicas: o Santo Padre recomenda-as vivamente e alerta contra um certo numero de “novidades” que se espalham em varias regiões:
“Não permiti – como alguns querem sob pretexto de uma“renovação” da liturgia ou falando com ligeireza, de eficácia ou de dignidade que só os ritos litúrgicos teriam – que as igrejas sejam fechadas durante o tempo em que não estejam sendo realizadas funções públicas, como já se faz em certas regiões; que a adoração do Santíssimo Sacramento e as piedosas visitas ao sacrário eucarístico sejam negligenciadas; que seja desaconselhada a confissão das faltas feita apenas como ato de devoção; que o culto da Virgem Mãe de Deus, sinal de predestinação na opinião de santos, seja subestimado, sobretudo entre os jovens, a ponto de se tornar morno, pouco a pouco e, afinal, se extinguir. Estes modos de agir são frutos envenenados excessivamente nocivos à piedade cristã que crescem sobre os galhos podres de uma árvore sã...” (pág. 66)
Conhecemos o irenismo falso de muitos que, para atrair os “irmãos separados” e restaurar, como eles dizem, a unidade da Igreja, estão prestes a abandonar tantas e tantas práticas da verdadeira devoção que caracteriza a vida dos verdadeiros filhos da Igreja, a fim de não aborrecer aqueles que permanecem fora da Igreja. Pelo mesmo irenismo falso, os inovadores irão ainda relaxar as orações do mês de Maria, do mês do Rosário, as consagradas ao Sagrado Coração durante o mês de junho, os tríduos, as novenas, a Via Sacra...
“Faria uma obra perniciosa e cheia de trapaça aquele que ousasse, temerariamente, promover a reforma desses exercícios de piedade para reduzi-los tão somente a cerimônias litúrgicas...” (pág. 68)
E, ao fim da Encíclica, um ultimo apelo à vigilância contra os erros e os preconceitos dos inovadores de nosso tempo:
“...Atenção para que não se infiltrem em vosso rebanho os erros perniciosos e sutis de um falso “misticismo” e de um nocivo “quietismo” – erros já condenados (Enc. “Mystici Corporis) – e que as almas não sejam seduzidas por um perigoso “humanismo” nem por uma doutrina falaciosa alterando a própria noção da fé católica nem, enfim, por um retorno excessivo ao “arqueologismo” em matéria litúrgica. ...Que não se espalhem as opiniões falsas daqueles que crêem errado e ensinam que a natureza humana do Cristo glorioso habita realmente e com presença contínua nos “justificados” ou que uma graça única e idêntica, pretendem eles, une o Cristo com os membros de seu Corpo místico.” (pág. 74)
É de fazer estremecer o pensamento de que tantos “frutos envenenados” foram largamente distribuídos às almas de boa vontade, mal preparadas para se preservar e sendo tão grande o prestígio dos inovadores e imenso o poder de seus meios de difusão. Ninguém duvida de que profundas modificações teriam acontecido e separações definitivas realizadas se o patrimônio espiritual de nossos povos cristãos não fosse tão durável em sua solidez.
O que resta de tantas “novidades” de que fomos, como que, invadidos nos últimos quinze anos? Houve alguma que tenha escapado ao julgamento severo do Soberano Pontífice que as condena? Nós não pensamos assim. Porém houve as que sobreviveram à sua condenação. As opiniões erradas, dissemos, têm a vida dura. Daí que em 1954, depois de uma provação de sete anos, Pio XII voltou a tratar, falando do Sacerdócio da Igreja, sobre as mais graves destas “novidades” que afetam a ação principal do sacerdócio cristão: a celebração do Sacrifício Eucarístico.
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Quando foi publicado o discurso de 31 de maio de 1954, já então julgamos necessário lembrar as linhas essenciais da Encíclica “Humani Generis” da qual ele constituía o prolongamento e a explicitação relativamente ao capítulo sobre o Magistério sagrado do Tratado da Igreja.
Voltamos hoje a este assunto apenas para realçar as reações de Pio XII relativamente aos inovadores e os seus juízos sobre as “novidades” no campo doutrinal: por acaso os erros em matéria de Moral e de liturgia, assim como de pastoral, não têm sua origem profunda em erros em teologia dogmática, em Escritura Santa e em filosofia?
“...Existem hoje alguns [entre os doutores católicos], assim como nos tempos apostólicos, que se apegam mais do que convém às “novidades” no temor de passar por ignorantes de tudo o que arrasta um século de progressos científicos: constata-se, então, que eles, na sua pretensão de se subtrair da direção do Magistério sagrado, se vêm em grande perigo de se afastar pouco a pouco da verdade divinamente revelada e de induzir outros a irem com eles ao erro. – As “novas opiniões”, quer se inspirem elas em desejo condenável de “novidades”, quer em qualquer louvável razão...”
Estas são, desde as primeiras páginas, as advertências do Santo Padre sobre as disposições gerais dos “amadores de novidades”. Em seguida o exame prossegue nos detalhes, depois de exprimir a dor de ver arrastados ao desprezo pela Igreja aqueles que procuram em outro lugar a luz:
“De fato, ó dor, os “amadores de novidades” passam naturalmente do desdém pela teologia escolástica à falta de atenção, até ao desprezo pelo próprio Magistério da Igreja que, com toda a sua autoridade, aprova inteiramente essa teologia".
“Para voltar aos “novos sistemas” aos quais nos referimos antes, há certos pontos que alguns propõem ou que eles destilam, por assim dizer, nos espíritos e que resultam em detrimento da autoridade divina das Sagradas Escrituras. Assim perverteu-se, audaciosamente, o sentido da definição do (primeiro) Concilio do Vaticano (1870) sobre Deus, autor das Sagradas Escrituras. Também a teoria que limita a inerrância das Sagradas Escrituras aos pontos em que elas tratam de Deus, da Moral e da religião continua a ser professada de modo renovado [que eles chamam de “progresso” da teologia !] apesar de que ela foi muitas vezes condenada...”
Nunca é demais repetir: as “novidades”, os falsos “progressos” de “pesquisas” são, na maior parte das vezes, velharias ultrapassadas, abandonadas e...condenadas.
“Além do mais, o sentido literal das Sagradas Escrituras e sua explicação feita laboriosamente sob o controle da Igreja por tantos exegetas de tão grande valor, devem submeter-se, segundo as invenções que agradam aos inovadores, a uma “nova exegese”, dita simbólica e espiritual; e só assim os santos livros do Antigo Testamento, que seriam ainda hoje ignorados na Igreja, como uma fonte que se teria enterrado, seriam enfim abertos a todos. Eles asseguram que todas as dificuldades, por este meio, se desvanecem, e que elas só paralisariam aqueles que se mantêm apegados ao sentido literal da Bíblia.”
Já se assinalou mais de uma vez a imprudência dos “amadores de novidades” e sua suficiência e sua segurança: Pio XII dirá também, sua impudência! Eles sacodem o jugo da Igreja, “indigna do século de liberações”, para impor o jugo deles que, longe de liberar, sujeita as consciências e sufoca as inteligências. Quanto não se deve temer? Pio XII, em várias ocasiões, usa o termo “frutos envenenados”, nada menos. E eles serão reconhecidos por todos aqueles que Pio XII procurou e procurará ainda preservar:
“Não espanta que semelhantes “novidades” tenham já produzido frutos envenenados em todas ou quase todas as partes da teologia...”
Não se pode esquecer os comentários que procuraram minimizar a Encíclica e que fizeram silêncio sobre esses “frutos” claramente denunciados pelo Soberano Pontífice. O Papa não elabora uma lista completa deles mas indica os mais perigosos: a alegação de que a razão humana não pode provar o ser de Deus sem o socorro da Revelação, a negação de que o mundo teve um começo, a criação apresentada como necessária, a corrupção da noção de que a ordem sobrenatural é gratuita, a perversão da noção do pecado original e a do pecado em geral, a perversão da noção de satisfação e a perversão da noção da Presença real...
Quem não percebe as repercussões destas “novidades” (coisas velhas) do domínio da dogmática para o plano da Pastoral e da Liturgia? “É pela cabeça que o peixe apodrece” diziam os antigos japoneses. O envenenamento da vida religiosa dos cristãos, de que fala Pio XII, tem sua origem nas aberrações primeiras de uma certa “nova teologia”[2].
E quem não vê também que, o mais freqüentemente, as aberrações de que se torna culpada a “nova teologia” têm sua origem em falsas teorias filosóficas e, particularmente, em metafísica e em criteriologia? É o que vai esclarecer Pio XII nas páginas esplêndidas sobre o valor da Filosofia adotada pela Igreja e sobre o dever do Magistério sagrado de defender esta Filosofia que Leão XIII, depois dos Padres da Igreja, gostava de chamar a “avenida da Fé”. No espírito de muitos, hoje em dia, nada impede que “novidades”, frutos da pesquisa sem interesse, se oponham a uma verdade já adquirida: de onde o dever de substituir esta por aquelas. Pio XII nos fornece uma forte lição de Lógica maior para responder aos propósitos insensatos dos inovadores em todos os domínios e, antes de mais nada, aos inovadores em filosofia:
“...Deus, Soberana Verdade, criou a inteligência humana e a dirige, é preciso dize-lo, não para que ela possa opor, cada dia, “novidades” ao que já está solidamente adquirido mas para que, tendo rejeitado os erros que teriam tentado se insinuar nela, ela levante progressivamente o verdadeiro sobre o verdadeiro segundo a ordem e a própria complexidade que nós discernimos na natureza das coisas de onde tiramos a verdade.”
Nós acreditamos que no dia em que todos os pensadores católicos admitirem, para a professar e viver dela, esta verdade primeira, o acordo entre todos se fará e não terão mais razão de ser esses movimentos, essas correntes de pensamento, essas escolas divergentes que se opõem perpetuamente umas às outras para o maior prejuízo dos cristãos. E Pio XII prossegue:
“Daí porque um cristão, seja ele filósofo ou teólogo, não pode lançar-se levianamente sobre todas essas “novidades” que se inventam a cada dia, para as adotar; que ele faça, ao contrário, um exame muito cuidadoso delas, que ele as pese em justa balança; e assim, guardando-se de perder ou de contaminar a verdade já adquirida, evitará causar um prejuízo certo à própria fé e pô-la em perigo grave.”
O leitor poderá ver, na leitura de toda a Encíclica, aquilo que nunca nos cansaremos de dizer e de repetir: que o mal atual é, em primeiro lugar e principalmente, uma deficiência da inteligência que se recusa a formar-se nas disciplinas necessárias da Lógica e da Ontologia. É o “mental” que é preciso corrigir para filosofar, para teologizar, como também para nos entregarmos a todas as ciências experimentais ou às ciências do social e do político. A Encíclica vai enfrentar um sofisma corrente em meios intelectuais católicos, helás, assim como em ambientes racionalistas:
“Enquanto esses inovadores desprezam a philosophia perennis , eles exaltam outras, antigas ou novas, do Oriente ou do Ocidente, de maneira tal que parecem insinuar nos espíritos que, qualquer que seja a filosofia, qualquer que seja a maneira pessoal de pensar, com alguns retoques ou complementos, se necessário, tal filosofia ou tal maneira de pensar podem ser compatíveis com o dogma católico. Ora, isto é absolutamente falso, sobretudo quando se trata desses produtos da imaginação que se chama de imanentismo, de idealismo, de materialismo, quer histórico, quer dialético, ou ainda o existencialismo ou que ela professe o ateísmo ou negue todo valor ao raciocínio metafísico. Que católico pode ter a menor dúvida sobre estas coisas? (em destaque no original)".
Perguntamos o que resta hoje dessas “novidades” que procurávamos apressadamente “assimilar” a qualquer custo, sob a ameaça de vermos recusada a nossa condição de “homens do século vinte” ou de “abertos ao mundo moderno para o conhecer, compreender, amar e servir”.
Diz Pio XII na conclusão:
“Nós sabemos, certamente, que a maior parte dos mestres católicos... permanecem distantes desses erros hoje espalhados abertamente ou em segredo, erros que vêm da paixão por novidades ou até de uma intenção mal regulada de apostolado (o falso irenismo que Pio XII denunciou varias vezes) mas Nós sabemos também que essas “novas opiniões” podem conquistar os imprudentes; daí porque preferimos opormo-nos a elas desde o seu princípio ao invés de procurar remediar um mal já tornado inveterado.”
Essas “novas opiniões”, o Papa as teme por causa dos... imprudentes, isto é, responderam ao Papa, por causa dos “menores de idade”. Ora, disseram, numa época em que todos são adultos e têm direito a ser tratados, tanto pela Igreja como pelo Estado, como adultos e não mais como criancinha que toma mamadeira e vive sob tutela, é preciso dar livre curso a essas “novidades” e dar liberdade de pensamento aos cristãos para que as adotem ou as rejeitem seguindo tão somente as exigências de sua consciência evoluída[3]. Pio XII não deixará sem resposta estes propósitos de independência e de autonomia. Ele havia escrito sobre este assunto no Ano Santo (1950). No Ano Marial (l954) ele voltará a fazê-lo.
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É sabido em que circunstancias S.S. Pio XII pronunciou seu discurso em que o assunto das duas Encíclicas, “Mediator Dei” e “Humani Generis”, foi retomado: no próprio âmago do Ano Marial, nas vésperas da canonização de seu predecessor Pio X, “o ilustre campeão da Igreja”, diante de uma extraordinária assembléia de Cardeais, Arcebispos e Bispos, ele suplica aos príncipes da Igreja que se juntem à sua luta presente para a defesa da unidade interior da Igreja em seu fundamento intimo: a Fé.
O Papa não o ignora. É o mistério da Igreja. É no triplo encargo dos sucessores dos Apóstolos, é nos seus poderes instituídos divinamente: o magistério, o sacerdócio e o governo dos bispos sob a autoridade do Pontífice Romano que está “o problema” para a nossa geração; menos talvez para os descrentes e os cristãos que não são da Igreja do que para um numero crescente de católicos, de padres e de teólogos, talvez.
O Papa diagnosticou com grande perspicácia o mal espiritual contagioso cujos efeitos se multiplicam e estendem longe sua devastação. É contra este mal que o Amor o pressiona a trazer remédio. “Hoje, faltando-nos o tempo, diz ele no discurso de 31 de Maio, abreviaremos nosso discurso para abordar apenas o primeiro ponto (o Magistério vivo da Igreja)”...Foi em 2 de Novembro de 1954, no dia seguinte da instituição solene da nova festa litúrgica de Maria, Mãe de Deus e Rainha do Céu e da Terra, sempre sob o signo de São Pio X, que foi pronunciada a segunda parte do discurso:
“Hoje, prosseguindo de algum modo a conversação começada, Nós temos o prazer de vos falar, aproveitando a ocasião, das duas outras funções que, estreitamente ligadas à primeira, vos dizem respeito, reclamam vossa reflexão e vossos cuidados: o Sacerdócio e o Governo.”
Assim foi dado, para a hora que nós vivemos, um “Tratado da Igreja” cujo autor não é um teólogo particular, mais ou menos discutido conforme ele se declare de tal ou qual escola teológica, mas o Pastor Supremo, Chefe verdadeiro da Igreja do Cristo.
Quantas vezes ouvimos gemidos e queixas a respeito do Tratado clássico De Ecclesia ! Queriam que ele estivesse redigido não mais segundo o modo e o espírito do Primeiro Concílio Vaticano (1870) e principalmente não mais segundo o Concílio de Trento, os quais molestam fortemente alguns de nossos contemporâneos, mas ao modo e segundo o espírito das escolas teológicas modernas cheias de redescobertas, dos resultados do “voltar às fontes”, da luz das “novidades” do século XX. E põem-se os eclesiólogos a trabalhar para fazer-nos beneficiários dos “progressos” da “nova teologia”...Ora muito bem! Temos agora esse novo Tratado, o De Ecclesia desejado: é o discurso de S.S. Pio XII começado em 31 de Maio e acabado em 2 de Novembro de 1954. (...)
[1] Pio XII
[2] Sobre a Nova Teologia, ver “A Nova Teologia”, artigo de Dom Antônio de Castro Mayer e Um Prefeito sem Fé na Congregação para a Fé do jornal SimSimNãoNão
[3] Curiosamente, uma vez encastelados no poder, depois de Vaticano II, esses mesmos novidadeiros condenados aqui rejeitarão a possibilidade de escolha individual. Tudo o que sobrou para as consciências “evoluídas” foi a obrigação de submeter-se ao que “O Papa mandou pensar” sob pena de censura e excomunhão, mesmo em se tratando de doutrina condenada”- nota da redação)