Casamento Nulo. Será?
Dom Lourenço Fleichman OSB
Uma questão que de vez em quando volta à tona e que reveste, diante da crise da Igreja, um aspecto de grave importância é a questão dos casamentos nulos e o modo como os padres da Tradição, marginalizados pelo Vaticano, devem tratá-lo.
Eis como poderíamos resumir a questão: qual o caminho que deve tomar um fiel de nossas capelas se lhe acontecer a infelicidade de precisar de um processo jurídico de declaração de nulidade do seu casamento? Deve usar o caminho normal que seria o Tribunal Eclesiástico da diocese? ou ignorar o Direito Canônico e passar a novas bodas? Ou os padres das capelas tradicionais devem julgar eles mesmos sobre o assunto e determinar se a pessoa pode casar ou não? E se um fiel que freqüenta há pouco tempo uma capela da Tradição apresentar uma decisão de um tribunal eclesiástico oficial, anulando um casamento anterior seu, como deve agir o sacerdote, sabendo que os tribunais das dioceses estão declarando nulos muitos casamentos que provavelmente são válidos? (cf. artigo do Pe. Scott)
Tudo isso envolve a questão mais grave que possa existir para uma alma. Estará ela em pecado se casar novamente? Estará em risco sua salvação eterna?
A Fraternidade Sacerdotal São Pio X possui uma obra muito vasta no mundo inteiro. São centenas de milhares de fiéis. Algumas de suas capelas são igrejas enormes onde a frequência dominical passa dos 4000 fiéis. Evidentemente essas capelas funcionam como paróquias. Ali, fugindo do progressismo, as almas encontram um ambiente preservado do modernismo, onde a doutrina e a moral católicas são ensinadas e vividas pelas famílias.
Muitos dos que admiram o trabalho da Fraternidade e dos demais padres da Tradição, tomados de escrúpulos legalistas, acham que determinados atos deveriam ser passados às autoridades eclesiásticas; acham que deveríamos sempre repetir as tentativas de obter as permissões para casamentos, por exemplo; acham que todos os textos vindos de Roma ou dos bispos, deveriam ser "descascados", um a um, analisados, para que tivéssemos um assentimento religioso para o que é bom e rejeitássemos o que é mau.
Eles esquecem, no entanto, que esta prática não é viável, por diversas razões: primeiro porque existem regras na prática do direito, que seja civil ou eclesiástico, que obriga ao legislador emitir leis que sejam claras. E os textos eclesiásticos de hoje, desde o Concílio Vaticano II, passando pela Missa Nova até Dominus Iesus, são dúbios, muitos até favorecendo a heresia. Em seguida é preciso considerar que todo o direito da Igreja tem por obrigação respeitar a Tradição católica, aquilo que sempre, em toda parte e por todos foi ensinado. E não esquecer também que o fim de toda lei da Igreja é a salvação das almas, coisa deixada de lado há muito tempo pelos bispos do mundo inteiro, tomados que estão pelas preocupações políticas, econômicas e sociais. Acrescente-se a isso a impossibilidade física, temporal, de passarmos nosso tempo lendo encíclicas de 150 páginas, como são os textos de João Paulo II, escritos muitas vezes em linguagem difícil para a grande maioria dos fiéis. Como ler tudo? Como entender tudo o que foi lido? Como discernir o bom do mau? E se escorregarmos num desses pontos e acharmos que é bom aquilo que é um erro?
Não! Decididamente o católico não tem por obrigação ficar catando milho no meio da corrupção da doutrina. E se é inviável esta atitude, qual será, então, a certa? É o próprio bom senso que vai ditar a atitude de um filho que vê seu pai querendo encaminhá-lo para o pecado. Insistentemente! Durante quarenta anos! Não é negar sua condição de filho perder a confiança em seu pai. Essa é a realidade. Não podemos mais confiar neles. Não por espírito revolucionário de nossa parte, não por atitudes de revolta contra o pai, mas porque aquele que nos foi dado como protetor quer a nossa ruína, ensinando uma doutrina contrária ao nosso catecismo, pregando uma moral relativista, onde o pecado deixa de ser pecado, onde os pecadores têm acesso aos sacramentos sem se arrepender dos seus pecados. Eles mesmos nos obrigam a rechaçá-los, a não querer contato com eles.
É dentro desse contexto de defesa da nossa fé, para a nossa salvação, que é a primeira e mais grave obrigação de todo católico, que somos obrigados a dar às almas os recursos que, em tempos normais, eles teriam do próprio Vaticano. Recursos que não estão mais ao alcance das almas por causa da contaminação com o modernismo, estuário de todas as heresias, no dizer de São Pio X, último Papa santo.
Nossas capelas precisam acolher os fiéis como verdadeiras paróquias, pois a única razão para não termos a "legalidade" é a crise da Igreja. Vendo por outro lado. Se não houvesse a crise, nossas capelas seriam, de fato, paróquias. Logo, é lícito e necessário que elas ofereçam aos fiéis os sacramentos e as consequências dos sacramentos.
Permitam-me, agora, trazer um exemplo fictício de casamento dentro de nossas capelas:
João é um jovem de uma capela da Fraternidade São Pio X. Ele, na faculdade, conheceu Tereza. Namoraram e quiseram se casar. A jovem, que chegou a frequentar algumas vezes a Missa na capela, aceita casar-se junto ao padre da Fraternidade São Pio X. Inicia-se a preparação, tanto espiritual quanto canônica, do casamento. No final deste processo, o padre, mediante a documentação apresentada pelos noivos, considera-os em estado livre para se casarem. É feito, assim o casamento.
Passa-se alguns meses e João procura o padre para dizer-lhe que Tereza foi embora, que ela o havia enganado. Ele conta ao padre os detalhes, onde fica clara a possibilidade de ter sido nulo o casamento. O padre, tomado de escrúpulos, encaminha João ao Tribunal Eclesiástico da Diocese. No Tribunal, nem deixam ele abrir o processo. Ele ouve do padre responsável: você está livre para casar com quem quiser pois os casamentos feitos na Fraternidade são nulos! Mas João sabe que não é assim, ele é católico tradicional, estudou a questão canônica da validade dos casamentos realizados pela Fraternidade, e casou-se protegido pelo cânon 1098 que prevê a impossibilidade dos noivos casarem-se diante do pároco local. (no Novo Código, trata-se do cânon 1116)
Quem vai declarar a nulidade do casamento de João? Se, de fato, foi nulo seu casamento, essa declaração é um direito seu!
Agora vamos inverter a situação. José casa-se com Joana, na Fraternidade São Pio X. Vivem uma vida normal, têm alguns filhos e frequentam a missa tradicional. Um dia, José sai de casa e vai morar com outra mulher. Vai ao Tribunal Eclesiástico que lhe declara que o seu casamento com Joana é nulo, pois foi contraído na Fraternidade São Pio X. Mediante esta declaração, José se casa, na igreja progressista com a outra. Esse segundo casamento, provocado pelo Tribunal Eclesiástico, é nulo, pois José já era casado válidamente com Joana, nos termos do Direito Canônico.
Eis dois exemplos de como o recurso ao Tribunal Eclesiástico oficial pode provocar situações de grave pecado às almas. Por causa de casos numerosos como estes era obrigação da Fraternidade São Pio X fazer alguma coisa pelas almas. Como bem explica o Pe. Scott, Superior da Fraternidade nos EUA, "assim como a Igreja provê a jurisdição para os padres tradicionais abençoarem os matrimônios, assim também ela, em tais circunstâncias trágicas, provê a autoridade para formar tribunais, sem os quais seria impossível chegar a qualquer tipo de certeza. A manutenção da reta consciência e a salvação das almas depende disto."
Nossa vida católica nas capelas tradicionais é de pleno direito. Não devemos nada a ninguém. Não seria possível que Deus permitisse que fôssemos precipitados em tamanha desgraça como é a crise da Igreja sem dar às almas os recursos necessários para a busca da perfeição, para a prática dos sacramentos, para a salvação. É por isso que devemos ter uma convicção muito forte de nossa condição de católicos, sem medo da marginalidade, pois ela nos é imposta pelos atuais chefes da Igreja, que preferiram dar ouvidos às vozes enganadoras do Cavalo de Tróia. Eles é quem precisam se converter e retomar o governo da verdadeira Igreja Católica, deixada à deriva, abandonada, enquanto eles governam a Outra, como chamava Gustavo Corção, ou a Anti-Igreja de Vaticano II, como dizia Dom Antônio de Castro Mayer. Nossa obrigação é tomar o leme e conduzir a barca. Não somos o comandante, não somos talvez nem mesmo um capitão. Mas na hora da tempestade, em que os chefes se escondem e fogem, cabe ao marujo pilotar a embarcação e não deixar que ela naufrague.