Dentro do trabalho de defesa da fé que empreendemos há cinco anos aqui no site da Capela faltavam algumas explicações sobre a delicada questão da obediência ao Papa. Iniciamos hoje com algumas explicações de Dom Lefebvre num texto que tem um valor histórico extraordinário. Ele foi escrito dois meses antes da assinatura do famoso protocolo de intenções, entre o Vaticano e Dom Marcel Lefebvre, de 5 de maio de 1988 (cf. Tradição versus Vaticano, ed. Permanência, 2001). Como sempre costumamos fazer, daremos ênfase às explicações doutrinárias, aos fundamentos claros e objetivos tirados da fé católica, da prática bi-milenar da Igreja, mais do que a questões de opinião pessoal. Que nossos críticos saibam responder com argumentação tão criteriosa quanto a nossa.
O DEVER DA DESOBEDIÊNCIA
Dom
Marcel Lefebvre
Tendo o Reitor do Seminário de Ecône, Padre Lorans, pedido que eu colaborasse na redação deste número da “Lettre aux Anciens”, pareceu-me útil relembrar o que escrevi em 20 de janeiro de 1978 sobre algumas objeções que nos fizeram, relativas à nossa atitude face aos problemas que a atual situação da Igreja levanta.
Uma
das perguntas era: Como o senhor concebe a obediência ao Papa? Eis a resposta dada há
dez anos:
Os princípios que determinam a obediência são conhecidos e são tão conformes com
a razão e com o senso comum, que podemos perguntar como é que pessoas
inteligentes podem afirmar que "preferem enganar-se com o Papa
do que estar na Verdade contra ele".
Não é isso que nos ensinam a lei natural e o Magistério da Igreja.
A
obediência supõe uma autoridade que dá uma ordem ou decreta uma lei. As
autoridades humanas, mesmo sendo instituídas por Deus, apenas têm autoridade
para atingir o fim determinado por Deus, e não para dele se desviarem. Quando
uma autoridade usa o seu poder em oposição à lei pela qual esse poder lhe foi
dado, não tem direito à obediência, e devemos desobedecer-lhe.
Essa necessidade de desobediência é aceita em relação ao pai de família que
encoraja a filha a prostituir-se, ou em relação à autoridade civil que obriga
os médicos a provocarem abortos e a matarem inocentes. Porém, a autoridade do
Papa é aceita a qualquer preço, como se o Papa fosse infalível no seu governo
e em todas as suas palavras. É desconhecer a história e ignorar o que é, na
realidade, a infalibilidade.
Já São Paulo teve que dizer a São Pedro que ele "não andava direito
segundo a verdade do Evangelho" (Gal. II,14). E o mesmo São Paulo
encorajou os fiéis a não lhe obedecerem se lhe acontecesse pregar um Evangelho
diferente daquele que lhes tinha ensinado anteriormente (Gal. I,8).
São Tomás, quando fala da correção fraterna, alude à resistência de São
Paulo face a São Pedro, e comenta-a assim: "Resistir na cara e em público
ultrapassa a medida da correção fraterna. São Paulo não o teria feito em
relação a São Pedro se não fosse de algum modo o seu igual (...). No
entanto, é preciso saber que, caso se tratasse de um perigo para a Fé, os
superiores deveriam ser repreendidos pelos inferiores, mesmo publicamente. Isso
ressalta da maneira e da razão de agir de São Paulo em relação a São Pedro, de
quem era súdito, de tal forma, diz a glosa de Santo Agostinho, que 'o próprio
Chefe da Igreja mostrou aos superiores que, se por acaso lhes acontecesse
abandonarem o reto caminho, aceitassem ser corrigidos pelos seus inferiores’"
(S. Tomás., Sum. Theol. IIa-IIae, q. 33, art. 4, ad 2m).
O caso evocado por São Tomás não
é ilusório pois aconteceu, por exemplo, em relação a João XXII. Esta Papa
julgou poder afirmar que as almas dos eleitos só gozariam a visão beatífica
depois do Juízo Final. Emitiu essa opinião pessoal em 1331 e, em 1332, pregou
uma opinião semelhante sobre o castigo dos condenados. Queria impor essa
opinião à Igreja por um decreto solene.
Mas as vivíssimas reações dos Dominicanos – principalmente os de Paris –
e dos Franciscanos fizeram com que renunciasse a essa opinião em favor da tese
tradicional, definida pelo seu sucessor Bento XII em 1336.
E eis o que diz o Papa Leão XIII na sua encíclica Libertas praestantissimum,
de 20 de junho de 1888: "Suponhamos, pois, uma prescrição de um poder
qualquer que estivesse em desacordo com os princípios da reta razão e com os
interesses do bem público (e, com mais razão ainda, com os princípios da
Fé): ela não teria nenhuma força de lei..." E, um pouco adiante:
"Quando faltar o direito de mandar, ou quando a ordem for contrária à
razão, à lei eterna, à autoridade de Deus, então é legítimo desobedecer
– queremos dizer: aos homens – para obedecer a Deus."
Ora a nossa desobediência é provocada pela necessidade de conservar a Fé
católica. As ordens que nos foram dadas exprimem claramente que o foram
para nos obrigar à submissão sem reservas ao Concílio Vaticano II, às
reformas pós-conciliares e às prescrições da Santa Sé, ou seja, a orientações
e a atos que minam a nossa fé e destroem a Igreja, e a isso é impossível
acedermos.
Colaborar
na destruição da Igreja é atraiçoar a Igreja e Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ora,
todos os teólogos dignos desse nome ensinam que, se o Papa pelos seus atos
destrói a Igreja, não lhe podemos obedecer e deve ser repreendido, respeitosa
mas publicamente. (Vitoria, Obras..., pp. 486-487; Suarez, De fide,
disp. X, sec.VI, no. 16; São Roberto Bellarmino, De Rom. Pont., lib. II,
c. 29; Cornelius a Lapide, Ad. Gal. 2, 11; etc.),
Os
princípios da obediência à autoridade do
Papa são os mesmos que os que ordenam as relações entre uma autoridade
delegada e os seus súditos. Eles só não se aplicam à autoridade divina, que é
sempre infalível e indefectível e, portanto, não supõe qualquer falha.
Na medida em que Deus comunicou a sua autoridade ao Papa, e na medida em que o
Papa entende usar essa infalibilidade – cujo exercício implica em condições
bem determinadas – não pode haver falha.
Mas fora desses casos, a autoridade do Papa é falível, e, por isso, os critérios
que obrigam a desobediência aplicam-se aos seus atos. Não é, pois, inconcebível
que haja um dever de desobediência em relação ao Papa.
A autoridade que lhe foi conferida foi-lhe conferida para fins determinados e,
em definitivo, para glória da Santíssima Trindade, de Nosso Senhor Jesus
Cristo, e para salvação das almas.
Tudo o que for realizado pelo Papa em oposição a esse fim não terá
qualquer valor legal, nem qualquer direito à obediência e, mais ainda,
obriga à desobediência para permanecer na obediência a Deus e na fidelidade à
Igreja.
É o que acontece relativamente a tudo o que os últimos Papas ordenaram em nome
da liberdade religiosa e do ecumenismo, desde o Concílio: todas as reformas
feitas a esse respeito são desprovidas de qualquer direito e de qualquer obrigação.
Os Papas usaram da sua autoridade contrariamente ao fim para o qual essa
autoridade lhes foi dada. Têm, pois, direito à nossa desobediência.
A Fraternidade S. Pio X e a sua história manifestam publicamente essa necessidade de
desobediência para permanecermos fiéis a Deus e à Igreja. Os anos 74-75-76
trazem à memória essa incrível disputa entre Ecône e o Vaticano, entre o
Papa e eu próprio.
O resultado foi a condenação, a suspensão “a divinis”, nula de pleno
direito, pois o Papa abusou tiranicamente da sua autoridade para defender suas
leis contrárias ao bem da Igreja e ao bem das almas.
Esses acontecimentos são uma aplicação histórica dos princípios
do dever de desobediência.
Foram motivo de afastamento de certo número de padres amigos e de alguns
membros da Fraternidade que, assustados por essa condenação, não
compreenderam o dever de desobediência em determinadas circunstâncias.
Ora, doze anos se passaram; oficialmente, a condenação mantém-se; as relações
com o Papa são tensas, tanto mais que as conseqüências do ecumenismo se
aproximam da apostasia, o que nos obrigou a reações veementes.
No entanto, o anúncio de uma consagração episcopal feita em 29 de junho de
1987 alvoroçou Roma, que, finalmente, decidiu aceder ao nosso pedido de uma
visita apostólica e enviou, em 11 de novembro, o Cardeal Gagnon e Mons. Perl.
Tanto quanto nos foi dado saber pelos discursos e comentários dos visitadores,
o seu julgamento foi dos mais favoráveis, e o Cardeal não hesitou em assistir
à Missa Pontifical de 8 de dezembro, celebrada pelo prelado suspenso “a
divinis”.
Que concluir de tudo isto, a não ser que a nossa desobediência dá bons
frutos, frutos reconhecidos pelos enviados da autoridade à qual desobedecemos?
E eis-nos perante novas decisões a tomar. Estamos mais do que nunca animados a
dar à Fraternidade os meios de que precisa para continuar a sua obra essencial:
a formação de verdadeiros padres da Santa Igreja Católica Romana, isto é,
dotar-me de sucessores no Episcopado.
Roma compreende esta necessidade, mas aceitará o Papa que os bispos sejam
oriundos da Tradição? Para nós não pode ser de outro modo. Qualquer outra
solução seria sinal de que nos querem alinhar pela Revolução Conciliar, e,
nesse caso, o nosso dever de desobediência surge imediatamente.
As conversações estão em curso, e em breve conheceremos as verdadeiras intenções
de Roma. Elas decidirão o futuro. Temos de continuar a rezar e a velar. Que o
Espírito Santo nos guie por intercessão de Nossa Senhora de Fátima!
Ecône, 29 de março de 1988
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Marcel Lefebvre