A conferência que apresentamos aqui tem várias qualidades. Além de tratar com profundidade da questão da visibilidade de Igreja em meio à crise terrível que atravessamos, traz o pensamento autêntico de Mgr. Marcel Lefebvre, tal como ele o expôs aos seus padres pouco tempo depois de Dom Gérard Calvet ter feito seu acordo com o Vaticano. Mesmo se em determinadas cartas, como é natural, ele tenha falado com maiores cuidados na esperança de mover os adversários a compreender e aceitar a Tradição, não resta dúvida de que seu pensamento estava longe de aceitar Vaticano II ou a Missa de Paulo VI. Nossa tradução é tirada da Revista dos dominicanos franceses, Le Sel de la Terre, de 2002.
A
Visibilidade da Igreja e a Situação Atual
Apresentamos aqui alguns extratos de uma conferência de Dom Marcel Lefebvre publicada na revista Fideliter 66 de novembro/dezembro de 1988, p. 27-31 Monsenhor respondia a alguns argumentos teológicos de Dom Gérard desenvolvidos em sua declaração publicada no jornal Présent do dia 18 de agosto de 1988, demonstrando sua fraqueza. Ele responde com antecedência aos argumentos que tentam justificar a atual posição de Campos.
A Igreja Visível
Não
quero dizer que inexista Igreja fora de nós; não se trata disso. Mas nos últimos
tempos, foi-nos dito que é necessário que a Tradição entre dentro da Igreja
visível. Penso que comete-se aí um erro muito grave.
Onde
está a Igreja visível? A Igreja visível é reconhecida pelos sinais
que ela sempre deu de sua visibilidade : ela é una, santa, católica e apostólica.
Eu
vos pergunto : onde estão os verdadeiros sinais da Igreja? Estão eles na
Igreja oficial (não se trata de Igreja visível, mas da Igreja oficial) ou
conosco, no que representamos, no que somos?
É
evidente que somos nós que guardamos a unidade
da fé, que desapareceu da Igreja oficial. Um Bispo acredita nisso, outro já
não acredita, a fé é diversa, seus catecismos abomináveis estão cheios de
heresias. Onde está a unidade da fé em Roma? Onde está a unidade da fé no
mundo? Fomos nós que a guardamos.
A
unidade da fé espalhada no mundo inteiro é a catolicidade. Ora, esta
unidade da fé no mundo inteiro, não existe mais, não existe mais catolicidade.
Existem tantas Igrejas católicas quanto Bispos e Dioceses. Cada um possui sua
maneira de ver, de pensar, de pregar, de passar o catecismo. Não existe mais
catolicidade.
A Apostolicidade? Eles romperam com o passado. Se eles fizeram algo, foi exatamente
isso. Eles não desejam mais o que é anterior ao Concílio Vaticano II. Veja o Motu
proprio do Papa que nos condena, ele diz muito bem : "a Tradição viva
é o Vaticano II": não se deve reportar mais a fatos anteriores ao
Vaticano II, isso não significa nada. A Igreja guarda a Tradição de século
em século. O que passou, passou desapareceu. Toda a Tradição encontra-se na
Igreja de hoje.
Qual
é esta Tradição? A que ela se liga? Como ela se liga ao passado?
É
o que os permitem dizer o contrário do que foi dito outrora, sempre pretendendo
que somente eles guardaram a Tradição. É o que nos pede o Papa : de nos
submeter à Tradição viva. Nós possuiríamos um conceito equivocado de Tradição,
visto que ela é viva e evolutiva. Mas, isto é o erro modernista : o Santo Papa
Pio X, na encíclica Pascendi, condenou estes termos : "Tradição viva,
Igreja viva, fé viva", etc, no sentido que os modernistas os entendem, ou
seja, da evolução que depende das circunstâncias históricas. A verdade da
revelação, a explicação da revelação, dependeria das circunstâncias históricas.
A
Apostolicidade
: nós nos vinculamos aos Apóstolos pela autoridade. Meu sacerdócio vem através
dos Apóstolos; vosso sacerdócio vem através dos Apóstolos. Nós somos filhos
daqueles que nos deram o episcopado. Nosso episcopado descende do Santo Papa Pio
V e através dele chegamos até aos Apóstolos.
Quanto
à Apostolicidade da fé, nós cremos na mesma fé que foi dos Apóstolos. Nós
não mudamos nada e nem queremos mudar nada.
E
enfim, a santidade. Não nos faremos louvores e cumprimentos. Se não
quisermos considerar a nós mesmos, consideremos os outros, e consideremos os
frutos de nosso apostolado, os frutos vocacionais, de nossas religiosas e também
dentro das famílias cristãs. Boas e santas famílias cristãs germinam, graças
a vosso apostolado. É um fato, ninguém o pode negar. Mesmo nossos visitantes
progressistas de Roma constataram a boa qualidade de nosso trabalho. Quando Mgr.
Perl disse às irmãs de Saint-Pré e às irmãs de Fanjeaux que é com base
como a delas que se deverá reconstruir a Igreja, não é um pequeno elogio.
Tudo
isso mostra que somos nós que possuímos os sinais da Igreja visível. Se ainda
existe uma visibilidade da Igreja hoje em dia, é graças a vós. Estes sinais,
não se encontram mais nos outros. Não existe mais neles unidade da fé; ora,
é precisamente a fé que é a base de toda a visibilidade da Igreja.
A
catolicidade é a fé no espaço. A Apostolicidade é a fé no tempo, e a
santidade é o fruto da fé, que concretiza-se nas almas pela graça do bom
Deus, pela graça dos sacramentos. É completamente falso considerar-nos como se
não fizéssemos parte da Igreja visível. É inacreditável. É a Igreja
oficial que nos rejeita, não somos nós que rejeitamos a Igreja, longe de nós.
Ao contrário, nós estamos sempre unidos à Igreja romana e mesmo ao Papa,
evidentemente, ao sucessor de Pedro. Penso que devemos ter esta convicção para
não cair nos erros que estão sendo espalhados agora.
Sair da Igreja?
Evidentemente,
poderão objetar-nos : deve-se, obrigatoriamente, sair da Igreja visível para não
perder sua alma, sair da sociedade dos fiéis unidos ao Papa?
Não somos nós, mas os modernistas que saíram da Igreja. Quanto a dizer "sair da Igreja visível" é equivocar-se assemelhando Igreja oficial e Igreja visível.
Nós
pertencemos à Igreja visível, à sociedade dos fiéis sob a autoridade do
Papa, pois, não recusamos a autoridade do Papa, mas o que ele faz. Nós
reconhecemos ao Papa sua autoridade, mas quando ele a usa para fazer o contrário
daquilo que lhe é facultado fazer, é evidente que não podemos seguí-lo.
Sair,
portanto, da Igreja oficial? Em uma certa medida, sim, evidentemente. Todo o
livro de Jean Madiran, A Heresia do século XX, é a história das
heresias dos Bispos. É necessário, portanto, que saiamos do meio destes
Bispos, se não desejamos perder nossa alma.
Mas
isso não é suficiente, posto que é em Roma que a heresia instalou-se. Se os
Bispos são Heréticos (mesmo sem tomar este termo no sentido e com as conseqüências
do direito canônico) não é sem a influência de Roma.
Se
nós nos distanciamos deste tipo de gente, é com a mesma precaução que se
toma para com as pessoas que estão com AIDS. Não queremos nos contaminar. Ora,
eles estão com AIDS espiritual, uma doença contagiosa. Se quisermos guardar a
saúde, não devemos aproximarmo-nos deles.
Sim, o liberalismo e o modernismo introduziram-se no Concílio e no interior da Igreja. São idéias revolucionárias e a Revolução, que encontrávamos na sociedade civil, passou para dentro da Igreja. O Cardeal Ratzinger não mais esconde esse fato: eles adotaram as idéias não da Igreja, mas do mundo e eles acham que devem fazê-las entrar na Igreja.
Ora,
as autoridades não mudaram sequer uma vírgula de suas idéias sobre o Concílio,
o liberalismo e o modernismo. Eles são a anti-Tradição, Tradição como a a
Igreja compreende e como entendemos. Isso não entra dentro do conceito deles. O
conceito deles sendo evolutivo, eles estão contra a Tradição fixa na qual nós
nos mantemos.
Estimamos
que tudo aquilo que nos ensina o catecismo nos vem de Nosso Senhor e dos Apóstolos
e que nada mudou. Isto é claro. As três partes do catecismo nos vem de Nosso Senhor. Porque mudá-las? Nós
não podemos evoluí-las. O Credo, os mandamentos de Deus, os meios de nos
salvar, os sacramentos, o santo sacrifício da missa e a oração, tudo isso,
vem diretamente de Nosso Senhor. Tudo isso, é nosso catecismo, que nos é dado,
geralmente, com nosso batismo, que nos é colocado entre nossas mãos. É nosso
estatuto desde que Nosso Senhor desejou que todos fossem batizados, que todos
adotassem o Credo, o decálogo, os sacramentos que ele instituiu, bem como o
santo sacrifício da missa e as orações.
Para
eles, não, tudo isso evolui e evoluiu com o Vaticano II. O fim atual da evolução,
é o Vaticano II. É por isso que nós não podemos nos ligar a Roma. Teria sido
possível, se tivéssemos podido nos proteger completamente como, de fato, pedíamos.
Mas eles não quiseram. Eles recusaram os membros que pedíamos para a comissão,
eles recusaram o número de Bispos que pedíamos, recusaram o número de Bispos
que eu lhes apresentei. Estava claro: eles não queriam que estivéssemos
protegidos. Eles queriam ter-nos diretamente debaixo de seus golpes e poder,
assim, impor-nos esta política anti-Tradição da qual eles estão imbuídos.
Roma não mudou
Um
exemplo mostra-nos que nada mudou no espírito dos romanos: em 1º de maio
(1988), em Veneza realizou-se um importante congresso sobre a liberdade
religiosa nas atuais situações políticas. Este congresso foi dirigido pelo
reitor da Universidade de Latrão, Mgr. Pierre Rossano, famoso por suas idéias
liberais, e Mgr. Pavan, que é o autor de, praticamente, todos os documentos
sociológicos publicados desde o Papa João XXIII, de todos os documentos que
dizem respeito à sociedade. As encíclicas dos Papas João XXIII, Paulo VI e João
Paulo II foram praticamente redigidas por ele. É o grande pensador do Vaticano.
Foram
estes dois prelados que fizeram e dirigiram esta reunião de Veneza sobre a
liberdade religiosa dentro das situações políticas. É muito interessante
notar o que eles dizem a respeito da liberdade religiosa : "mudança da
concepção da liberdade religiosa". Eles não se escondem. Eles falam da
influência da Segunda guerra mundial. Eles buscam motivações longínquas:
"já sob Pio XII realiza-se uma tomada de consciência da liberdade
religiosa, realizada na tragédia da Segunda guerra mundial.
Isso permitiu, para utilizar uma frase estereotipada, a
passagem do direito da verdade ao direito da pessoa.
Examinemos
um pouco melhor esta frase. O direito da verdade ensina-nos que existe a
liberdade da verdadeira religião, mas que o homem não possui a liberdade de
escolher a sua religião, de escolher a verdade. Somos feitos e criados com
inteligência e vontade livres, não resta a menor dúvida, mas esta liberdade só
deve servir para nos fazer aderir à verdade e não a outra coisa. Pois um laço
fundamental, essencial, une a liberdade e a verdade. Romper este laço para
dizer : a partir de agora, compreendemos que não se trata mais de ligar
liberdade com verdade, mas liberdade e natureza humana, é o erro fundamental.
Nossa própria natureza, inteligência e vontade, é feita para aderir à
verdade. E, eis que agora, e os autores do congresso de Veneza escreveram em
seus relatórios, suprime-se o direito da verdade, o laço que une o sujeito por
natureza à verdade, para colocar no lugar o direito da pessoa, um direito
inteiramente independente. Este direito estaria fundado sobre a natureza, mas
considerada dentro de sua dignidade de sujeito livre, ou seja, autônomo e sem
laços. E os autores precisam que isso deve ser particularmente verdadeiro em
matéria religiosa que trata da orientação da vida.
É
preocupante. Como se pudéssemos mudar coisas tão profundas na natureza. Deus
nos criou para a verdade, Ele não nos deu a liberdade para escolhermos o erro.
Não é possível. Não temos o direito ao erro. Ora, praticamente, é a isto
que conduz a liberdade religiosa : permitir à natureza de escolher livremente a
sua verdade, é dar-lhe direito ao erro.
E
todos os estados deveriam aceitar isso, sem opor-se no limite da ordem pública.
Mas a ordem pública é muito extensa! Estas sociedades deveriam aceitar o
ecumenismo, a laicização dos estados, a liberdade de culto. Elas deveriam
reconhecer como diretivas tudo aquilo que o homem pode retirar de si mesmo, as
idéias que puderem conceber, os conceitos religiosos forjados por eles mesmos.
Depois
da afirmação da liberdade religiosa, eles reafirmam o princípio absolutamente
revolucionário da Declaração dos Direitos do homem. É verdadeiramente um
princípio satânico : "non serviam",
eu não quero servir, não quero ser submisso à verdade.
Mas
sim! se Deus impõem-nos
uma verdade, assim será. "Aquele que não crer será condenado". Que
exista a tolerância, pelo fato das pessoas enganarem-se, mas o princípio dessa
liberdade não existe e não pode existir.
Tenho
que vos dizer, para que vejam bem, que Roma não mudou em nada. Não é uma
acusação vazia, mas retirada dos relatórios oficiais da reunião de Veneza,
que aconteceu recentemente : 1º de maio. O reitor da universidade de Latrão é
a cabeça de toda a formação universitária da Igreja de Roma. São os
representantes oficiais de Roma. E eis o que eles reafirmam. Nada mudou. Não
podemos seguir pessoas como estas. São erros graves, profundos.
Aconteça o que acontecer, devemos continuar, e o bom Deus nos mostra que seguindo esta via nós cumprimos o nosso dever. Não negamos a Igreja Romana. Não negamos a sua existência, mas não podemos seguir suas diretivas. Não podemos seguir os princípios do pós-Concílio. Nós não podemos ligar-nos a eles.
Só existe uma Igreja,...... A Igreja conciliar!
Percebo
a vontade de Roma de nos impor suas idéias e suas maneiras de ver. O Cardeal
Ratzinger sempre me diz : "Mas Monsenhor, existe apenas uma Igreja, não se
deve fazer uma Igreja paralela". Qual é esta Igreja, para ele? A Igreja
conciliar, é evidente. Quando ele nos disse explicitamente:
"Evidentemente, se lhe damos, neste protocolo, alguns privilégios, o
Senhor deve, também, aceitar o que fazemos; e conseqüentemente, na Igreja São
Nicolas-du-Chardonnet deve-se celebrar uma missa nova todos os domingos",
vocês bem vêem que eles querem nos arrastar para a Igreja conciliar. Isso não
é possível, pois, é claro que eles querem nos impor estas novidades para
acabar com a Tradição. Eles não concederão nada por estima pela liturgia
tradicional, mas, simplesmente, para enganar aqueles a quem eles oferecem e
diminuir nossa resistência, encontrar uma brecha no bloco tradicional para
destruí-lo. É a política deles, sua tática consciente. Eles não se enganam,
e vocês conhecem a pressão que eles fazem. Entre vocês, alguns já foram
pressionados pelo Bispo ou por alguém querendo dissuadi-los de deixarem a Tradição.
Eles fazem esforços consideráveis em todos os lugares.
As
irmãs de Saint-Pré foram visitadas pelo padre Philippe que tentou doutriná-las.
O Bispo de Carcassonne ofereceu amizade e compreensão para com as irmãs de
Fanjeaux e ao nosso padre Pozzera. Ele foi devidamente recolocado em seu lugar.
Mas eles continuam. Eles voltarão. O padre Innocent-Marie telefonou-me
recentemente e disse-me que ele estava sendo vítima de pressões do Bispo de
Angers. Eles não cessarão de tentar nos pegar. É verdadeiramente inacreditável
esta guerra de agora contra a Tradição. [...]
Penso
que se deve evitar tudo aquilo que puder manifestar, por meio de expressões
muito duras, nossa desaprovação àqueles que nos deixam. Não devemos enchê-los
de epítetos que podem ser vistos como injuriosos. Isso de nada nos serve, pelo
contrário. Pessoalmente, sempre tive esta atitude para com aqueles que nos
deixam - e Deus sabe quanto isso aconteceu durante a história da Fraternidade;
a história da Fraternidade é quase que a história das separações - Sempre
tive como princípio : não mais ter relações, acabou. Eles nos deixaram, eles
irão a outros pastores, a outros rebanhos : nenhuma relação mais. Tanto
daqueles que partiram como "sedevacantistas" quanto daqueles que nos
deixaram por nós não sermos suficientemente papistas, todos tentaram
engolfar-nos em uma polêmica. Eu nunca respondi uma palavra. Rezo por eles, é
tudo. [...]