ACERCA
DO MATRIMÔNIO CRISTÃO
(Casti
connubii)
CARTA ENCÍCLICA
45.
Considerando, Veneráveis Irmãos, tamanha excelência das castas núpcias, mais
doloroso Nos parece ver como esta divina instituição, especialmente nos nossos
tempos, é tantas vezes e com tanta facilidade desprezada e vilipendiada.
46.
É um fato, em verdade, que não já em segredo, nas trevas, mas abertamente,
posto de parte todo o sentido do pudor, quer oralmente, quer por escrito, pelas
representações teatrais de todos os gêneros, pelos romances, pelas novelas e
leituras amenas, pelas projeções cinematográficas, pelos discursos radiofônicos,
enfim, por todas as descobertas mais recentes da ciência, se calca aos pés e
se ridiculariza a santidade do matrimônio; ao passo que ou se louvam os divórcios,
os adultérios e os vícios mais ignominiosos, ou pelo menos se pintam com tais
cores, que parecem querer mostrá-los como isentos de qualquer mácula e infâmia.
E não faltam livros que para tal se apresentam como científicos, mas que na
realidade o mais das vezes não têm de ciências senão umas tinturas, com o
fim de se poderem mais facilmente insinuar nos espíritos. E as doutrinas neles
defendidas preconizam-se como maravilhas do espírito moderno, isto é, daquele
espírito que se vangloria de amar só a verdade, de se ter emancipado de todos
os velhos preconceitos, no número dos quais inclui e relega a tradicional
doutrina cristã do matrimônio.
47.
E até se fazem penetrar tais máximas entre todas as condições de pessoas,
ricos e pobres, operários e patrões, letrados e ignorantes, solteiros e
casados, crentes e descrentes, adultos e jovens; e particularmente a estes últimos,
como à presa mais fácil, se lançam os laços mais perigosos.
48.
É certo que nem todos os fautores dessas novas máximas se deixam arrastar a
todas as últimas conseqüências da sensualidade desenfreada; alguns deles,
esforçando-se por deter-se a meio caminho, queriam fazer algumas concessões
aos nossos tempos, mas só quanto a alguns preceitos da lei divina e natural.
Estes, porém, não passam de mandatários mais ou menos conscientes daquele
nosso inimigo que sempre se esforça por semear a cizânia no meio do trigo (Cf.
Mt 13, 25). É por isso que nós, a quem o Pai de família colocou como guarda
do seu campo, e que temos o sacrossanto dever de vigiar que a boa semente não
seja sufocada pelas ervas más, julgamos que nos são dirigidas aquelas gravíssimas
palavras com que o Apóstolo Paulo exortava seu querido Timóteo: “Mas tu
vigia... cumpre o teu ministério... prega a palavra, insiste oportuna a
importunamente, repreende, suplica, exorta com toda a paciência e doutrina”
(2 Tim 4, 2 a 5).
49.
E, visto que, para evitar as fraudes do inimigo, é necessário antes de mais
nada descobri-las, e que é muito útil avisar os incautos de suas perfídias, não
podemos de forma alguma calar-Nos, por causa do bem e da salvação das almas,
embora preferíssemos nem sequer falar em semelhantes iniqüidades, “como convém
aos santos”. (Ef 5, 3).
50.
Para começar pela própria origem de tais males, a sua principal raiz está em
dizer que o matrimônio não foi instituído pelo Autor da natureza nem elevado
por Nosso Senhor Jesus Cristo à dignidade de sacramento, mas que é uma invenção
humana. Outros sustentam que não encontraram dele indício algum na natureza e
nas leis que a regem, mas que encontraram apenas o poder de gerar a vida e um
forte impulso para o satisfazer, seja como for; alguns ainda reconhecem na
natureza humana certos princípios e como germes do verdadeiro casamento, no
sentido de que, se os homens não se unissem por vínculo estável, não se
teria provido suficientemente à dignidade dos cônjuges e ao fim natural da
propagação e da educação dos filhos. E, todavia, estes ensinam também que o
matrimônio, por exceder estes germes, com o concurso de várias causas, foi
inventado só pelo espírito humano e instituído só pela vontade dos homens.
51.
Quão grave seja o erro de todos estes e quão vergonhosamente se desviam da
honestidade, já se compreende por tudo quanto nesta Nossa Encíclica expusemos
acerca da origem e da natureza do matrimônio e dos fins e benefícios que lhe são
inerentes. E que estas teorias são preniciosíssimas revelam-no ainda as conseqüências
que os seus próprios defensores delas deduzem: que, tendo as leis, as instituições,
os costumes, pelos quais se rege o matrimônio, nascido apenas da vontade dos
homens, a esta somente se devem sujeitar; daí deriva que se poderão e deverão
estabelecer, modificar e derrogar, consoante aprouver aos homens. Quanto ao
poder gerador, visto que se funda na própria natureza, dizem que é mais
sagrado e mais amplo do que o matrimônio, podendo por isso exercer-se quer
dentro, quer fora dos limites da vida matrimonial, ainda sem ter em conta os
fins do matrimônio, como se a libertinagem de uma mulher impudica gozasse quase
dos mesmos direitos que a casta maternidade da legítima consorte.
52.
Apoiados nestes princípios, chegam alguns a inventar formas de união,
adaptadas, segundo crêem, às atuais condições dos homens e dos tempos, e que
apresentam como novas formas de matrimônio: casamento temporário, casamento de
experiência e casamento amigável, que reclamam para si a plena liberdade e
todos os direitos do matrimônio, com exceção do vínculo indissolúvel e com
exclusão da prole, a não ser no caso em que as partes venham depois a
transformar essa comunidade e intimidade de vida em matrimônio de pleno
direito.
53.
E não faltam os que pretendem, a tal instando, que semelhantes abominações
sejam coonestadas pelas leis ou pelo menos desculpadas pelos costumes públicos
dos povos e por suas instituições; e parece que não suspeitam sequer que
semelhantes coisas, longe de se poderem exaltar como conquistas da cultura
moderna, de que tanto se vangloriam, são ao contrário aberrações nefandas,
que reduziriam, sem dúvida, ainda as nações cultas aos bárbaros usos de
alguns povos selvagens.
54.
Mas, para tratarmos agora, Veneráveis Irmãos, de cada um dos pontos que se opõem
aos diversos bens do matrimônio, falemos primeiro da prole, que muitos ousam
chamar molesto encargo do casamento e afirmam dever ser evitada cuidadosamente
pelos cônjuges, não pela honesta continência (permitida até no matrimônio,
pelo consentimento de ambos os cônjuges), mas viciando o ato natural. Alguns
reclamam para si esta liberdade criminosa, porque, aborrecendo os cuidados da
prole, desejam somente satisfazer a sua voluptuosidade, sem nenhum encargo;
outros porque, dizem, não podem observar a continência nem permitir a prole,
por causa das dificuldades quer pessoais, quer da mãe, quer da economia doméstica.
55.
Mas nenhuma razão, sem dúvida, embora gravíssima, pode tornar conforme com à
natureza e honesto aquilo que intrinsecamente é contra a natureza. Sendo o ato
conjugal, por sua própria natureza, destinado à geração da prole, aqueles
que, exercendo-a, deliberadamente o destituem da sua força e da sua eficácia
natural procedem contra a natureza e praticam um ato torpe e intrinsecamente
desonesto.
56.
Não admira pois que, segundo atesta a Sagrada Escritura, a Majestade divina
odeie sumamente este nefando crime e algumas vezes o tenha castigado com a
morte, como recorda Santo Agostinho: “Ainda com a mulher legítima, o ato
matrimonial é ilícito e desonesto quando se evita a concepção da prole.
Assim fazia Onã, filho de Judá, e por isso Deus o matou” (Sto. Agost., De
conjug., livro, II n. 12; cf. Gn 38, 8-10.).
57.
Por conseguinte, havendo alguns que, afastando-se manifestamente da doutrina
cristã, ensinada desde o princípio e nunca interrompida, pretenderam
publicamente proclamar, há pouco, doutrina diversa acerca deste modo de
proceder, a Igreja Católica, a quem o próprio Deus confiou a missão de
ensinar e defender a integridade e a honestidade dos costumes, posta no meio
desta ruína moral para preservar de tanta torpeza a castidade da união
nupcial, proclama altamente e de novo promulga pela Nossa boca: qualquer uso do
matrimônio em que, pela malícia humana, o ato seja destituído da sua natural
força procriadora infringe a lei de Deus e da natureza, e aqueles que ousarem
cometer tais ações se tornam réus de culpa grave.
58.
Por isso, em virtude da Nossa suprema autoridade e do cuidado da salvação de
todas as almas, advertimos aos sacerdotes que se entregam ao Ministério de
ouvir confissões, e todos os outros curas de almas, que não deixem errar os fiéis
que lhes foram confiados em ponto tão grave da lei de Deus, e muito mais que se
conservem eles próprios imunes dessas perniciosas doutrinas e que, de nenhum
modo, sejam coniventes com elas. Se, porém, algum confessor ou pastor de almas,
o que Deus não permita, induzir ele próprio nestes erros os fiéis que lhe
foram confiados, ou ao menos, quer aprovando, quer se calando culposamente,
neles os confirmar, saiba que tem de dar contas severas a Deus, Supremo Juiz, de
ter traído a sua missão, e considere que lhe são dirigidas aquelas palavras
de Cristo: “São cegos e guias de cegos; e, se o cego serve de guia ao cego,
ambos cairão no abismo” (Mt 15, 14; Santo Ofício, 22 de novembro 1922).
59.
As causas por que se defende o mau uso do matrimônio são, não raras vezes,
imaginárias ou exageradas, para não falarmos nas que são vergonhosas. A
Igreja, todavia, como piedosa Mãe, conhece e sente admiravelmente tudo o que se
diz a respeito da saúde da mãe e do perigo da sua vida. E quem poderá
considerar esses perigos sem viva comiseração? Quem não sentirá a maior
admiração ao ver a mãe oferecer-se, com heróica fortaleza, a uma morte quase
certa, para conservar a vida ao filho que concebeu? Tudo o que ela tiver sofrido
para cumprir plenamente o dever natural, só Deus, riquíssimo e misericordiosíssimo,
lho poderá retribuir e lho dará certamente não só em medida cheia mas
superabundante (Lc 6, 38).
60.
A Santa Igreja também sabe perfeitamente que não raro um dos cônjuges sofre o
pecado mais do que o comete, quando, por motivo verdadeiramente grave, admite a
perversão da reta ordem, no que não consente e por isso não é culpado,
contanto que, neste caso, se lembre da lei da caridade e não deixe de afastar e
demover o outro do pecado. Nem se pode dizer que procedem contra a ordem da
natureza aqueles cônjuges que usam do seu direito do modo devido e natural,
embora por causas naturais, quer do tempo, quer de certos defeitos, não possa
nascer uma nova vida. É que, quer no próprio matrimônio, quer no uso do
direito conjugal, há também fins secundários, como são o auxílio mútuo, o
fomentar o amor recíproco e o aquietar a concupiscência, que os cônjuges de
nenhum modo estão proibidos de intentar, contanto que se respeite sempre a
natureza intrínseca do ato e, por conseguinte, a sua subordinação ao fim
principal.
61.
Penetram igualmente no íntimo do Nosso espírito os lamentos daqueles cônjuges
que, oprimidos duramente pela falta de meios, têm gravíssima dificuldade para
alimentar os seus filhos.
62.
Mas devemo-nos acautelar cuidadosamente de que as deploráveis condições das
coisas naturais dêem ocasião a erro muito mais funesto. Nenhumas dificuldades
podem surgir que sejam capazes de levar à obrigação de derrogar os
mandamentos de Deus, os quais proíbem os atos intrinsecamente maus, pois em
todas as conjunturas sempre podem os cônjuges, com o auxílio da graça de
Deus, desempenhar-se fielmente em sua missão e conservar no matrimônio a
castidade, ilibada de tal mácula vergonhosa; porque é incontestável a verdade
da fé cristã expressa pelo magistério do Concílio de Trento: “Ninguém
deve pronunciar estas palavras temerárias, condenadas pelos padres com anátema:
é impossível o homem justificado observar os preceitos de Deus — porque Deus
não ordena coisas impossíveis, mas quando ordena adverte que faças o que
possas e peças o que não possas e ajuda a poder” (Conc. Trid., Ses. VI, Cap.
11). Esta mesma doutrina foi pela Igreja solenemente repetida e confirmada na
condenação da heresia jansenista, que tinha ousado proferir contra a bondade
de Deus esta blasfêmia: “Alguns preceitos de Deus são impossíveis aos
homens justos que queiram e procurem observá-los, segundo as forças que
presentemente têm; e falta-lhes a graça que os torne possíveis” (Const.
Apost. Cum occasione, 31 maio 1653, prop. 1).
63.
Mas devemos recordar ainda, Veneráveis Irmãos, outro gravíssimo delito por
que se atenta contra a vida da prole escondida ainda no seio materno. Uns julgam
que isso é permitido e deixado ao beneplácito da mãe e do pai. Outros,
todavia, o consideram ilícito a não ser que haja gravíssimas causas, que
chamam indicação médica, social, eugênica. Todos estes exigem que, no que se
refere às leis penais do Estado, pelas quais é proibida a morte da prole
gerada mas ainda não nascida, as leis públicas reconheçam a declarem livre de
qualquer castigo a indicação que preconizam e que uns entendem ser uma e
outros entendem ser outra. E até não falta quem peça que as autoridades públicas
prestem o seu auxílio nessas operações assassinas, o que, ai! todos sabem quão
freqüentissimamente acontece em certos lugares.
64.
No que respeita, porém, à “indicação médica e terapêutica” — para
Nos servirmos de suas próprias palavras — já dissemos, Veneráveis Irmãos,
quanta compaixão sentimos pela mãe a quem o cumprimento do seu dever natural
expõe a graves perigos da saúde e até da própria vida; mas que causa poderá
jamais bastar para desculpar de algum modo a morte direta do inocente? Porque é
desta que aqui se trata. Quer a morte seja infligida à mãe, quer ao filho, é
contra o preceito de Deus e a voz da natureza: “Não matar” (Ex 20, 13; Cf.
Decr. Santo Ofício, 4 maio 1898, 24 julho 1895, 31 maio 1884). A vida de um e
de outro é de fato coisa igualmente sagrada, que ninguém, nem sequer o poder público,
terá jamais o direito de destruir. Insensatissimamente se faz derivar contra os
inocentes o jus gladii, que não tem valor senão contra os culpados;
também de maneira nenhuma existe aqui o direito de defesa até ao sangue contra
o injusto agressor (pois quem chamará injusto agressor a uma criancinha
inocente?); tampouco o chamado direito de extrema necessidade, que pode ir até
à morte direta do inocente. Os médicos que têm probidade e ciência
profissional louvavelmente se esforçam por defender e conservar ambas as vidas,
a da mãe e a do filho; pelo contrário, mostrar-se-iam indigníssimos do nobre
título e da glória de médicos aqueles que, sob a aparência de arte médica
ou movidos de mal-entendida compaixão, se entregassem a práticas assassinas.
65.
E tudo isto está plenamente de acordo com as severas palavras com que o Bispo
de Hipona se insurge contra os cônjuges depravados que procuram evitar a prole
e, não obtendo êxito, não receiam matá-la criminosamente. Diz ele:
“Algumas vezes essa crueldade impura ou impureza cruel chega ao ponto de
recorrer aos venenos da esterilidade, e, se com eles nada consegue, procura
extinguir de algum modo no ventre materno o fruto concebido e livrar-se dele,
preferindo que a prole morra antes de viver ou se já vivia no ventre seja morta
antes de nascer. Sem dúvida, se ambos assim são, não são cônjuges; e, se
tais foram desde princípio, não se uniram por matrimônio, mas por ilícitas
relações; se, porém, ambos assim não são, ouso dizer: ‘ou ela é de algum
modo meretriz do marido, ou ele adúltero da mulher’” (S. Agostinho, De
nupt. et concupisc. c. XV).
66.
Aquilo, porém, que se propõe acerca da indicação social e eugênica pode e
deve ser tomado em consideração, contanto que se proceda de modo lícito e
honesto e dentro dos devidos limites; mas, quanto a querer prover à necessidade
em que se apóia com a morte dos inocentes, repugna à razão e é contrário ao
preceito divino, promulgado aliás por aquelas palavras apostólicas: “não se
deve fazer mal para que daí venha bem” (Cf. Rom. III, 8).
67.
Aqueles, enfim, que têm o supremo governo das nações e o poder legislativo não
podem licitamente esquecer-se de que é dever da autoridade pública defender a
vida dos inocentes com leis oportunas e sanções penais, tanto mais quanto
menos se podem defender aqueles cuja vida está em perigo e é atacada, entre os
quais ocupam, sem dúvida, o primeiro lugar as crianças ainda escondidas no
seio materno. Se os magistrados públicos não só não defenderem essas crianças
mas, por leis e decretos, as deixarem ou até entregarem a mãos de médicos ou
de outros para serem mortas, lembrem-se de que Deus é juiz e vingador do sangue
inocente, que da terra clama ao céu (Cf. Gn 4, 10).
68.
Convém, finalmente, reprovar aquele pernicioso costume que se refere
proximamente ao direito natural do homem a contrair matrimônio, mas que de
certo modo respeita também verdadeiramente ao bem da prole. Há efetivamente,
alguns que, com demasiada solicitude dos fins eugênicos, não só dão certos
conselhos salutares para que facilmente se consiga a saúde e o vigor da futura
prole — o que não é, certamente, contrário à reta razão — mas chegam a
antepor o fim eugênico a qualquer outro, ainda que de ordem superior, e desejam
que seja proibido, pela autoridade pública, o matrimônio a todos aqueles que,
segundo os processos e conjeturas da sua ciência, supõem deverem gerar uma
prole defeituosa por causa da transmissão hereditária, embora pessoalmente
sejam aptos para contrair matrimônio. E até pretendem que eles, por lei,
embora não o queiram, sejam privados dessa faculdade natural por intervenção
médica, e isto não como castigo cruento infligido pela autoridade pública por
crime cometido, nem para prevenir futuros crimes dos réus, mas contra todo o
direito e justiça, atribuindo aos magistrados civis uma faculdade que nunca
tiveram nem legitimamente podem ter.
69.
Todos aqueles que assim procedem esquecem malignamente que a família é mais
santa que o Estado, e que os homens são criados primariamente não para a terra
e para o tempo, mas para o céu e para a eternidade. E não é lícito, em
verdade, acusar de culpa grave os homens, aptos aliás para o matrimônio, que,
empregando ainda todo o cuidado e diligência, se prevê que terão uma prole
defeituosa, se contraírem núpcias, embora de modo geral convenha dissuadi-los
do matrimônio.
70.
A autoridade pública, todavia, não tem poder direto sobre os membros dos súditos;
e por isso nunca pode atentar diretamente contra a integridade do corpo, nem por
motivos eugênicos nem por quaisquer outros, se não houver culpa alguma ou
motivo para aplicar pena cruenta. O mesmo ensina S. Tomás de Aquino, ao estudar
a questão de os juízes humanos poderem ou não ocasionar qualquer dano ao súdito
para prevenir males futuros, o que concede quanto a outros danos, mas nega com
razão no que respeita à lesão corporal: “Nunca ninguém deve ser castigado
sem culpa pelo juízo humano com a pena de flagelo, a fim de ser morto, mutilado
ou atormentado (Summ. Theolog.
2ª 2ae q. 108, a. 4, ad 2m).
71.
Ademais, a doutrina cristã ensina e é certíssimo à face da luz da razão
humana que os próprios indivíduos não têm outro domínio sobre os membros do
seu corpo senão o que se refere ao respectivo fim natural, não podendo destruí-los
ou mutilá-los, ou por qualquer forma torná-los inaptos às funções naturais,
a não ser no caso em que não possa prover-se por outra forma ao bem de todo o
corpo.
72.
E agora, para tratarmos de outra fonte de erros que dizem respeito à fé
conjugal, qualquer pecado que se comete em prejuízo da prole é conseqüentemente
também, de alguma forma, pecado contra a fé conjugal, visto que os benefícios
do matrimônio são conexos entre si. Mas, além disso, devem enumerar-se
separadamente tantas fontes de erro e corrupção contra a fé conjugal quantas
são as virtudes domésticas que esta fé compreende: a casta fidelidade de um e
de outro cônjuge, a honesta sujeição da mulher ao marido, e finalmente o
firme a sincero amor entre os dois.
73.
Primeiro que tudo, corrompem a fidelidade os que entendem dever-se ter indulgência
com as idéias e os costumes do nosso tempo acerca da falsa e prejudicial
amizade com terceiras pessoas e sustentam dever-se consentir aos cônjuges maior
liberdade de pensar ou de atuar no que respeita a essas relações, tanto mais
que (como dizem) não poucos têm uma constituição sexual congênita tal, que
a não podem satisfazer dentro dos estreitos limites do matrimônio monogâmico.
Donde entendem que aquela rígida disposição de espírito por que os cônjuges
honestos condenam e recusam qualquer afeto e ato impuro com terceira pessoa é
uma antiga mesquinhez da inteligência e do coração ou um abjeto e vil ciúme,
e por isso têm na conta de nulas ou, pelo menos, acham que devem ser anuladas
as leis penais do Estado acerca da obrigação da fidelidade conjugal.
74.
O espírito nobre dos cônjuges castos, ainda que só pela luz natural da razão,
repele e despreza certamente tais erros como vãos a torpes; e esta voz da
natureza é plenamente aprovada e confirmada pelo mandamento de Deus: “Não
cometerás adultério” (Ex 20, 14) e pelo de Cristo: “Quem olha para uma
mulher com o fim de a desejar já cometeu em seu coração adultério com ela”
(Mt 5, 28). E nenhum costume ou mau exemplo, assim como nenhuma espécie de
progresso humano, poderá jamais enfraquecer a força deste divino preceito,
porque, assim como “Jesus Cristo ontem e hoje e nos séculos” (Hb 13, 8) é
sempre o mesmo, assim também a doutrina de Cristo é sempre a mesma, e dela não
caducará um único ponto até que tudo se tenha cumprido (Cf. Mt 5, 18).
75.
Os mesmos mestres do erro, que por escritos e por palavras ofuscam a pureza da fé
e da castidade conjugal, facilmente destroem a fiel e honesta sujeição da
mulher ao marido. Ainda mais audazmente, muitos deles afirmam com leviandade ser
ela uma indigna escravidão de um cônjuge ao outro; visto os direitos entre os
cônjuges serem iguais, para que não sejam violados pela escravidão de uma
parte, defendem com arrogância certa emancipação da mulher, já alcançada ou
por alcançar. Estabelecem, mais, que esta emancipação deve ser tríplice: no
governo da sociedade doméstica, na administração dos bens da família e na
exclusão e supressão da prole, isto é, social, econômica e fisiológica.
Fisiológica por quererem que a mulher, de acordo com sua vontade, seja ou deva
ser livre dos encargos de esposa, quer conjugais, quer maternos (esta mais do
que de emancipação deve apodar-se de nefanda perversidade, como já
suficientemente demonstramos). Emancipação econômica por força de que a
mulher, ainda que sem conhecimento e contra a vontade do marido, possa
livremente ter, gerir e administrar seus negócios privados, desprezando os
filhos, o marido e toda a família. Emancipação social, enfim, por se
afastarem da mulher os cuidados domésticos tanto dos filhos como da família,
para que, desprezados estes, possa entregar-se até às funções e negócios públicos.
76.
Todavia, esta emancipação da mulher não é verdadeira nem é a razoável e
digna liberdade que convém à cristã e nobre missão de mulher e esposa; é
antes a corrupção da índole feminina e da dignidade materna e a perversão de
toda a família, porquanto o marido fica privado de sua mulher, os filhos de sua
mãe, a casa e toda a família de sua sempre vigilante guarda. Pelo contrário,
essa falsa liberdade e essa inatural igualdade com o homem redundam em prejuízo
da própria mulher; porque, se a mulher desce daquele trono real a que dentro do
lar doméstico foi elevada pelo Evangelho, depressa cairá na antiga escravidão
(se não aparente, certamente de fato), tornando-se, como no paganismo, mero
instrumento do homem.
77.
Esta igualdade de direitos, porém, que tanto se exagera e se enaltece, deve
reconhecer-se em tudo o que é próprio da pessoa e dignidade humana, e que
resulta do pacto nupcial e está na essência do matrimônio; nestas coisas
certamente ambos os cônjuges gozam inteiramente do mesmo direito e estão
ligados pelo mesmo dever; quanto ao resto, deve existir certa desigualdade e
moderação, que o próprio interesse da família e a necessária unidade e
firmeza da ordem e da sociedade doméstica requerem.
78.
Se, no entanto, em qualquer parte as condições sociais e econômicas da mulher
casada tiverem de transformar-se algum tanto devido à alteração dos usos e
costumes da convivência humana, compete ao poder público adaptar às
necessidades e exigências hodiernas os direitos civis da mulher, tendo sempre
em vista o que é requerido pela diversa índole natural do sexo feminino, pela
honestidade dos costumes e pelo interesse comum da família, e desde que também
a ordem essencial da sociedade doméstica permaneça intacta, como instituída
que foi por uma autoridade e sabedoria mais alta que a humana, isto é, divina,
e que não pode mudar-se por leis públicas ou pela vontade dos indivíduos.
Sobre
a areia...
79.
Mas vão ainda mais além os modernos destruidores do matrimônio, ao substituir
o sincero e sólido amor, fundamento do íntimo prazer e da fidelidade conjugal,
por uma cega conveniência de caracteres e harmonia de gestos, a que chamam
simpatia, cessada a qual sustentam que se afrouxa o vínculo único por que se
unem as almas e que se dissolve plenamente. Que será isto senão edificar uma
casa sobre a areia? Diz Cristo Nosso Senhor que, apenas ela seja assaltada pelas
vagas da adversidade, logo vacilará e ruirá: “E sopraram os ventos, e
investiram contra essa casa, e ela caiu, e foi grande a sua ruína” (Mt 7,
27). Ao contrário, uma casa que tenha sido construída sobre a rocha, isto é,
sobre o mútuo amor entre os cônjuges e firmada numa consciente e constante união
das almas, jamais será sacudida ou abatida por nenhuma adversidade.
80.
Até aqui temos reivindicado, Veneráveis Irmãos, os dois primeiros e
excelentes benefícios do matrimônio cristão, que têm sido atacados pelos
subversores da sociedade moderna. Mas, assim como este terceiro benefício que
é o Sacramento está muito acima dos outros, assim também não é de admirar
que principalmente esta excelência seja por esses mesmos adversários muito
mais vigorosamente atacada. Ensinam em primeiro lugar que o matrimônio é coisa
exclusivamente profana e meramente civil, que de forma alguma deve confiar-se à
sociedade religiosa, isto é, à Igreja de Cristo, mas unicamente à sociedade
civil; e acrescentam, ademais, que o laço nupcial deve ser liberto de qualquer
vínculo de indissolubilidade, não só tolerando-se mas sancionando-se
legalmente as separações ou divórcios dos cônjuges, donde se seguirá
finalmente que o matrimônio, despojado de toda a santidade, fique no número
das coisas profanas e civis.
81.
Como postulado principal estabelecem que o próprio ato civil deve considerar-se
verdadeiro contrato nupcial (a que chamam matrimônio civil); o ato religioso,
por conseguinte, deve ser tão-somente mero acessório ou, quando muito,
permitido ao vulgo supersticioso. Depois querem que, sem exprobração de ninguém,
seja lícito o matrimônio entre católicos e não-católicos, sem se atender à
religião nem se pedir o consentimento da autoridade religiosa. Das doutrinas
que defendem dimana outra conseqüência, que consiste em desculpar os divórcios
realizados e em louvar e promover as leis civis que favoreçam a dissolução do
próprio vínculo.
82.
Pelo que respeita à natureza religiosa de qualquer matrimônio e muito
especialmente do matrimônio cristão, que é também Sacramento, tendo Leão
XIII, na Carta Encíclica, que já várias vezes citamos e declaramos Nossa,
largamente tratado e firmado, com graves argumentos, o que nesta matéria se
deve considerar, e julgando Nós bastar somente focar aqui alguns pontos, para
essa mesma Encíclica vos remetemos.
83.
Principalmente, quem queira investigar os antigos monumentos da história,
interrogar a imutável consciência dos povos e consultar as instituições e os
costumes de todas as gentes pode deduzir claramente, ainda que só à luz da razão,
ser inerente ao próprio matrimônio natural qualquer coisa de sagrado e
religioso, “não sobrevinda mas congênita, não recebida dos homens mas
fazendo parte da natureza”, visto o matrimônio ter “Deus por autor e ter
sido desde o princípio tal ou qual imagem da Encarnação do Verbo de Deus”
(Leão XIII, Enc. Arcanum, 10 fevereiro, 1880). A razão sagrada do
casamento, que está intimamente conexa com a religião e com a ordem das coisas
sagradas, dimana não só de sua origem divina, que já relembramos, mas também
de seu fim, que é gerar e educar a prole para Deus e conduzir igualmente os cônjuges,
mediante o amor cristão e o recíproco auxílio, e ainda, finalmente, da própria
missão natural do matrimônio, querida pela providencial inteligência de Deus
Criador, para ser como o vínculo da transmissão da vida, no qual servem os
pais como ministros da Onipotência divina. A tudo isto acresce a nova razão de
dignidade derivada do Sacramento, mediante a qual o matrimônio cristão se
tornou muito mais nobre e foi elevado a tal sublimidade, que se apresentou ao Apóstolo
como “um grande mistério”, “em tudo digno de honra” (Cf. Ef 5, 32; Heb
13, 4).
84.
A natureza religiosa do matrimônio e o sublime significado da sua graça e da
união entre Jesus Cristo e a Igreja exigem dos esposos um santo respeito às núpcias
cristãs e um santo zelo por que o casamento que estão para contrair se
aproxime o mais possível desse mesmo modelo.
85.
Muito faltam neste ponto, por vezes pondo em perigo a própria salvação
eterna; os que temerariamente contraem matrimônio misto, de que a providência
e o amor materno da Igreja afasta os fiéis por gravíssimas razões, conforme
se deduz claramente dos muitos documentos compreendidos naquele cânon do Código
onde se lê: “A Igreja proíbe em toda a parte, com grande severidade, que se
realize o matrimônio entre duas pessoas batizadas, uma das quais seja católica
e a outra pertencente a seita herética ou cismática, e, se houver perigo de
perversão do cônjuge católico e da prole, é proibido também pela própria
lei divina” (Cod. Jur. Can, c. 1060). E, se a Igreja, por vezes, devido a
circunstâncias dos tempos, das coisas e das pessoas, é levada a conceder a
dispensa destas severas disposições (salvo o direito divino e removido, quanto
possível, com oportunas garantias, o perigo de perversão), só muito
dificilmente o cônjuge católico não recebe nenhum dano de tal matrimônio.
86.
De fato, dele deriva, não raro, uma triste defecção da religião nos
descendentes, ou, pelo menos, a queda fácil naquela negligência religiosa que
se chama indiferença, vizinha da incredulidade e da impiedade. Acresce ainda
que, nos matrimônios mistos, se torna muito mais difícil aquela viva união
dos espíritos, que deve imitar o mistério há pouco relembrado da inefável
união da Igreja com Cristo.
87.
Facilmente, em verdade, virá a faltar a estreita união dos espíritos que,
assim como é sinal e característica da Igreja de Cristo, assim deve ser
distintivo, decoro e ornamento do casamento cristão. Costuma efetivamente
dissolver-se ou, pelo menos, afrouxar-se o vínculo dos corações onde haja
diversidade de pensamento e de afeto acerca das coisas mais altas e supremas que
o homem venera, isto é, acerca das verdades e dos sentimentos religiosos.
Depois surge o perigo de se enfraquecer o amor entre os cônjuges e de se
arruinar a paz e a felicidade da sociedade doméstica, que floresce
principalmente na unidade dos corações. E por isso há já muitos séculos o
antigo direito romano tinha definido: “O matrimônio é a união do homem e da
mulher e consórcio de toda a vida, a comunicação do direito divino e humano
(Modestinus, in Dig. livr. XXIII, II: De Ritu nuptiarum, livr. I Regularum).
88.
Mas o que sobretudo impede a restauração e a perfeição do matrimônio
estabelecido por Cristo Redentor é, como já advertimos, Veneráveis Irmãos, a
sempre crescente facilidade dos divórcios. De fato, os defensores do
neopaganismo, nada tendo aprendido com a triste experiência, vão sempre
atacando com ardor a sagrada indissolubilidade do casamento e as leis que lhe são
favoráveis, e pretendem dever declarar-se lícito o divórcio, para que uma
nova lei, mais humana, venha substituir as leis antiquadas.
89.
Apresentam eles muitas e variadas razões a favor do divórcio, umas
provenientes de vício ou culpa das pessoas, outras inerentes às próprias
coisas (chamam às primeiras subjetivas e às demais objetivas); em uma palavra,
tudo o que torna mais áspera e ingrata a inseparável convivência. Pretendem
basear tais razões e leis em muitos fundamentos: em primeiro lugar, o interesse
de ambos os cônjuges, quer do inocente, que tem por isso direito de separar-se
do cônjuge réu, quer do culpado de delitos, que, por isso mesmo, deve ser
afastado de uma união ingrata e coagida; depois, o benefício da prole, que
fica privada da boa educação ou perde o fruto dela, afastando-se muito
facilmente do caminho da virtude, escandalizada pelas discórdias e outras
culpas dos pais; finalmente, o interesse comum da sociedade, visto que este
requer que, antes de tudo, se dissolvam de fato os matrimônios que já não
servem para obter o fim em vista pela natureza; e pretendem, além disso, que a
lei consinta os divórcios, quer para prevenir os delitos que são de recear na
convivência de tais cônjuges, quer para evitar que a autoridade das leis e os
tribunais continuem a ser objeto de ludíbrio, porque os cônjuges, para obter a
desejada sentença de divórcio, ou cometem propositadamente os delitos em
virtude dos quais o juiz pode dissolver o vínculo, segundo a lei, ou mentem
descaradamente e juram falsamente tê-los cometido, apesar de o juiz ver com
clareza a realidade das coisas. Portanto, dizem, as leis devem adaptar-se de
qualquer forma a todas essas necessidades e às diferentes condições dos
tempos, opiniões dos homens, instituições e costumes das nações. Os motivos
apresentados bastariam por si sós, e principalmente se considerados em
conjunto, para demonstrar com evidência que se deve absolutamente conceder a
faculdade do divórcio por certos motivos.
90.
Outros, com maior audácia, são da opinião de que o matrimônio, como contrato
meramente privado que é, deve ser entregue ao consenso e ao arbítrio privado
dos dois contraentes, como sucede com os outros contratos privados, e assim
sustentam que pode ser dissolvido por qualquer motivo.
91.
Contra todas essas insânias, porém, fica de pé, Veneráveis Irmãos, a lei de
Deus amplissimamente confirmada por Cristo, e que não pode ser abalada por
nenhum decreto dos homens, opinião dos povos ou vontade dos legisladores: “Não
separe o homem aquilo que Deus uniu” (Mt 19, 6). Se o homem injuriosamente
tenta separá-lo, seu ato é completamente nulo; e com razão, porque, como já
mais de uma vez vimos, o próprio Cristo afirmou: “Todo aquele que repudia a
sua mulher e casa com outra é adúltero, e quem casa com a repudiada é adúltero”
(Lc 16, 18). Estas palavras de Cristo se referem a qualquer matrimônio, ainda o
somente natural e legítimo; pois de fato é própria de qualquer verdadeiro
matrimônio aquela indissolubilidade em virtude da qual ele fica subtraído
completamente, quanto à dissolução do vínculo, ao arbítrio das partes e a
qualquer poder civil.
92.
Deve-se relembrar igualmente, aqui, o solene juízo com que o Concílio de
Trento feriu de anátema essas coisas: “Aquele que disser que o vínculo do
matrimônio pode ser dissolvido pelo cônjuge por motivo de heresia, de molesta
coabitação ou de ausência simulada seja anátema” (Conc. Trident., sess.
XXIV, c. 5), e: “Se alguém afirmar que a Igreja erra quando ensinou e ensina
que, segundo a doutrina evangélica e apostólica, o vínculo do matrimônio não
pode ser dissolvido pelo adultério de um dos cônjuges e que nenhum dos dois,
nem sequer o inocente que não deu motivo ao adultério, pode contrair outro
matrimônio em vida do outro cônjuge, e que comete adultério tanto aquele que,
repudiada a adúltera, casa com outra como aquela que, abandonado o marido, casa
com outro, seja anátema” (Con. Trident. sess. XXIV
c. 7).
93.
Do fato de a Igreja não ter errado nem errar nesta doutrina, e de por isso
mesmo ser absolutamente certo que o vínculo do matrimônio não pode ser
dissolvido nem sequer pelo adultério, segue-se com evidência que muito menos
valor têm todas as outras razões, aliás mais fracas, que costumam
apresentar-se a favor do divórcio, as quais, por conseguinte, não devem ter-se
em conta alguma.
94.
De resto, as objeções que com aquele tríplice fundamento se apresentam contra
a firmeza do vínculo são de fácil refutação. De fato, os danos apontados
podem ser impedidos e os perigos removidos se em tais circunstâncias extremas
se permitir a separação imperfeita dos cônjuges, isto é, permanecendo incólume
e íntegro o vínculo, separação essa que a própria lei da Igreja concede
pelas palavras dos cânones que tratam da separação do tálamo, da mesa e da
habitação (Cod. Jur. Can., cn. 1128 e segs.). Compete às leis sacras e em
parte pelo menos também às civis, no que se refere às coisas e aos efeitos
civis, fixar as causas de tal separação, as condições, a forma e os cuidados
com que se deve prover à educação dos filhos e à incolumidade da família, e
remover, na medida do possível, todos os danos derivados para os cônjuges,
para a prole e para própria comunidade civil.
95.
Todos os argumentos, pois, que se costumam apresentar, e a que acima Nos
referimos, para demonstrar a indissolubilidade do matrimônio servem
evidentemente, e com igual força, não só para excluir a necessidade e a
faculdade dos divórcios mas também para negar a qualquer magistrado o poder de
os conceder. A todas as vantagens que se podem enumerar a favor da
indissolubilidade, correspondem outros danos do divórcio, perniciosíssimos não
só aos indivíduos como a toda a sociedade humana.
96.
E, para Nos servirmos novamente da doutrina do nosso Predecessor, quase não é
necessário observar que, assim como é grande a abundância de benefícios que
em si contém a firmeza indissolúvel do matrimônio, assim também é grande a
multidão dos inconvenientes que os divórcios trazem consigo. De um lado, com a
firmeza do vínculo os matrimônios são absolutamente seguros; do outro, ao
contrário, com a possibilidade e até probabilidade do divórcio o laço
nupcial se torna inconsistente, ou, pelo menos, objeto de ansiedade e suspeitas.
Por um lado, fica admiravelmente consolidada a mútua benevolência e comunhão
dos bens; pelo outro, fica deploravelmente enfraquecida, se se admitir a
faculdade de separação. De um lado, fortes proteções à fidelidade dos cônjuges;
do outro, perniciosos incitamentos à infidelidade. Por um lado, eficazmente
promovida a procriação, a proteção e educação da prole; pelo outro, sempre
expostas aos mais graves prejuízos. Por um lado, estancada a multíplice
oportunidade de discórdias entre as famílias e os parentes; pelo outro,
oferecidas ocasiões mais freqüentes a estas discórdias. Por um lado, mais
facilmente suprimidos os germes de dissensões; pelo outro, mais copiosa e
largamente espalhados. Por um lado, principalmente, reintegrada e felizmente
restaurada a dignidade e a missão da mulher na família e na sociedade; pelo
outro, indignamente rebaixada, exposta como está a esposa ao perigo de “ser
abandonada depois de ter servido à paixão do homem” (Leão XIII, Encíclica Arcanum,
10 de fevereiro de 1880).
97.
E, visto que, para destruir as famílias — concluindo com as gravíssimas
palavras de Leão XIII — “e abater o poderio dos reinos, nada tem maior força
do que a corrupção dos costumes, facilmente se percebe que os divórcios são
os maiores inimigos da prosperidade das famílias e das nações, dado nascerem
de costumes depravados dos povos, e fomentarem, como o atesta a experiência,
uma sempre maior corrupção da vida privada e pública. Se considerarmos que não
haverá freio possível para conter dentro de certos e preestabelecidos limites
a liberdade, uma vez concedida, dos divórcios, todos estes males se nos
patentearão com muito maior gravidade. É grande a força dos exemplos, mas é
maior a das paixões, e devido a tais incitamentos acontecerá certamente que o
desenfreado desejo dos divórcios, serpeando cada vez mais, invada o espírito
de muitíssimos, à maneira de morbo que grassa pelo contágio ou como torrente
que, uma vez quebrados os diques, se despenha” (Encíclica Arcanum, 10
de fevereiro de 1880).
98. Razão por que, como se lê na mesma Encíclica, a não ser que mudem as opiniões, as famílias e a sociedade humana devem estar sempre receosas de ser envolvidas no turbilhão e na desordem geral (Encíclica Arcunum, 10 de fevereiro de 1880). Ora, tanto a corrupção diariamente crescente como a incrível depravação da família nas regiões absolutamente dominadas pelo comunismo demonstram à saciedade com quanta verdade tudo isto tenha sido anunciado há 50 anos.