Encíclica Humani Generis de Pio XII (continuação)
II
- Penetração dos erros modernos
1.
No terreno da teologia
24.
Não deve causar maravilha que tais inovações tenham produzido seus frutos
envenenados em quase todas as partes da teologia. Põe-se em dúvida que a razão
humana sem a ajuda da Revelação divina e da graça possa demonstrar, com
argumentos tirados das criaturas, a
existência de um Deus pessoal: nega-se que o mundo tenha tido início e
afirma-se que a criação do mundo é necessária, porque procede da necessária
liberalidade do amor divino; como também se afirma que Deus não têm presciência
eterna e infalível das ações livres do homem; opiniões todas contrárias às
declarações do Concílio Vaticano (Cf. Conc. Vaticano I, Const. De
fide catholica, c. I, De Deo rerum
omnium creatore)
25.
É posto em discussão por alguns se os anjos são pessoas e se existe uma
diferença essencial entre matéria e espírito. Outros desnaturam o conceito da
gratuidade da ordem sobrenatural,
sustentando que Deus não pode criar seres inteligentes sem ordená-los e chamá-los
à visão beatífica. Nem basta ainda, pois deixando de lado as definições do
Concílio de Trento, chegam a destruir o verdadeiro conceito de pecado original
e juntamente o de pecado, em geral, como ofensa de Deus, bem assim o conceito da
satisfação que Jesus Cristo deu por nós. Nem falta quem sustente que a
doutrina da transubstanciação, porquanto fundada num conceito de substância já
antiquado, deva ser corrigida, de modo que se reduza a presença real de Cristo
na Eucaristia a um simbolismo, pelo qual as espécies consagradas não seriam
outra coisa senão sinais eficazes de uma presença espiritual
de Cristo e da sua íntima união, no Corpo místico, com os membros fiéis.
26.
Alguns não se julgam obrigados a professar a doutrina que expusemos numa das
Nossas Encíclicas, fundada nas fontes da Revelação, segundo a qual o Corpo Místico
de Cristo e a Igreja Católica Apostólica Romana são uma só e mesma coisa
(Cf. Enc. Mystici
Corporis Christi,
A.A. S. vol. XXXV, p. 193 s.). Alguns reduzem a uma fórmula vã a
necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para obter a salvação eterna!
Outros, finalmente, não admitem o caráter racional dos sinais de credibilidade
da fé cristã.
27.
É sabido que esses erros e outros semelhantes se andam espalhando entre alguns
de Nossos filhos, levados a engano por um zelo imprudente ou por uma ciência de
falso cunho, e a esses filhos somos obrigados a repetir, com o coração
dolorido, verdades conhecidíssimas e erros patentes, indicando-lhes com
preocupação os perigos de tais erros.
2.
No terreno da filosofia
28.
Todos sabem quanto apreço dá a Igreja à razão humana no que concerne à sua
capacidade de demonstrar com certeza a existência de um Deus pessoal, de provar
iniludìvelmente pelos sinais divinos os
fundamentos da própria fé cristã, de exprimir com justeza a lei natural
que o Criador imprimiu na alma humana, de conseguir por fim uma inteligência
limitada mas utilíssima dos mistérios (Cf.Conc. Vaticano I). Esta atribuição
podê-la-á a razão desempenhar convenientemente e com segurança, se estiver
nutrida daquela sã filosofia que constitui como que um patrimônio de família,
herdado das precedentes gerações cristãs e que reveste uma autoridade
superior, pois que o mesmo Magistério da Igreja confrontou com a própria
verdade revelada os seus princípios e as suas principais asserções,
precisadas e fixadas lentamente através dos séculos por homens de inegável
talento. Esta mesma filosofia, confirmada e comumente admitida pela Igreja,
defende o genuíno valor do conhecimento humano, os indestrutíveis princípios
da metafísica - a saber: de razão suficiente, de causalidade, de finalidade -
e propugna a capacidade da inteligência de atingir a verdade certa e imutável.
Devem-se respeitar as aquisições
definitivas da filosofia
29.
Nesta filosofia há certamente muitas coisas que não dizem respeito à fé e à
moral, nem direta nem indiretamente e por isso a Igreja as deixa à livre
discussão dos competentes na matéria; mas não existe a mesma liberdade com
respeito a muitas outras questões, especialmente com respeito aos princípios e
principais asserções de que acima falamos. Pode-se dar à filosofia, também
nessas questões essenciais, uma
veste mais conveniente e mais rica; poder-se-á reforçar a mesma filosofia com
expressões mais eficazes, despojá-la de certos meios escolásticos menos
adequados, enriquecê-la ainda - com prudência porém - de certos elementos que
são frutos do progressivo trabalho da inteligência humana. Não se deverá,
porém, jamais subvertê-la com falsos princípios, nem estimá-la
só como um grandioso monumento de valor puramente arqueológico. Pois a
verdade e toda a sua manifestação filosófica não pode estar sujeita a mudanças
cotidianas, especialmente tratando-se dos princípios evidentemente e
diretamente conhecidos como tais pela razão humana ou daquelas asserções,
referenciadas já pela sabedoria dos séculos, já pela harmonia com os dados da
Revelação divina. Qualquer verdade que a razão humana por meio de uma pesquisa sincera
for capaz de descobrir, não poderá jamais estar em contraste com uma verdade já
anteriormente demonstrada; porque Deus, suma Verdade, criou e rege o intelecto
humano, não para que às verdades já adquiridas ele contraponha cada dia
outras novas, mas para que, removendo os erros que eventualmente se forem
introduzindo, acrescente verdade a verdade, na mesma ordem e com a mesma
harmonia, onde a inteligência
humana vai haurir a verdade. Por isso o cristão, seja filósofo ou teólogo, não
abraça sem mais, com precipitação e leviandade, todas as novidades que
aparecem, mas as deve examinar com a máxima diligência e as deve ponderar no
seu justo peso, para não perder a verdade já adquirida ou corrompê-la,
certamente com perigo e dano para a sua fé.
Devem-se
respeitar o método e a doutrina de São Tomás de Aquino
30.
Se se considera bem quanto acima está exposto, facilmente aparecerá claro o
motivo por que a Igreja exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas ciências
filosóficas "segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico
(Direito Canônico, cân. 1366, 2) já que, como o sabemos pela experiência de
vários séculos, o método do grande Aquino se distingue por singular
superioridade tanto no ensino como na investigação; a sua doutrina
harmoniza-se esplendidamente com a Revelação divina e é eficasíssima tanto
para pôr a salvo os fundamentos da fé, como para colher com utilidade e
segurança os frutos de um sadio progresso (A.
A. S. vol. XXXVIII, 1946, p. 387).
31.
É deveras para deplorar que hoje a filosofia, confirmada e admitida pela
Igreja, seja objeto de desprezo da parte de alguns, a ponto de, com imprudência,
declará-la antiquada na forma racionalista pelo processo de pensamento. Vão
espalhando que esta nossa filosofia defende erroneamente a opinião de que possa
existir uma metafísica verdadeira de modo absoluto; quando pelo contrário eles
sustentam que as verdades, especialmente as verdades transcendentes, não podem
ser expressadas mais convenientemente que por meio de doutrinas divergentes que
se completem entre si, ainda em certo modo entre si opostas. Daí que a
filosofia escolástica com a sua clara exposição e solução das questões,
com a sua exata determinação dos conceitos e suas claras distinções, pode
ser útil - concedem os tais - como preparação para o estudo da teoria escolástica
muito bem condizente com a mentalidade dos homens medievais; mas não pode
dar-nos - acrescentam - um método e uma orientação filosófica que
corresponda às necessidades da cultura moderna. Objetam demais que a filosofia
perene não é senão a filosofia das essências imutáveis ao passo que uma
mentalidade moderna se deve interessar pela existência
de cada indivíduo e da vida sempre em devir. E enquanto de uma parte desprezam
esta filosofia, de outra parte exaltam os demais sistemas, antigos e recentes,
de povos orientais e de povos ocidentais, de modo que parece quererem insinuar
que todas as filosofias ou teorias, com o retoque - se necessário - de alguma
correção ou de algum complemento, se podem conciliar com o dogma católico.
Mas nenhum católico pode pôr em dúvida quanto isto seja falso, especialmente
tratando-se de sistemas como o imanentismo, o idealismo, o materialismo, seja
histórico seja dialético, ou ainda como o existencialismo, quando professa o
ateísmo ou quando nega o valor do raciocínio no campo da metafísica.
3.
No terreno didático
32.
Finalmente, à filosofia de nossas aulas levantam esta acusação: que ela no
processo do conhecimento se ocupa somente da inteligência e faz caso omisso da
função da vontade e do sentimento. Isto não corresponde à verdade: a
filosofia cristã não negou nunca a utilidade e eficácia que provém das boas
disposições da alma toda, para conhecer e abraçar as verdades religiosas e
morais; pelo contrário, ela sempre ensinou que a falta de tais disposições
pode ser a causa pela qual a inteligência, sob o influxo das paixões e da
vontade transviada, se obscureça a tal ponto que já não consiga ver a
verdade. Mais ainda, o Doutor Comum é de parecer que a inteligência pode em
algum modo perceber os bens superiores da ordem moral, seja natural, seja
sobrenatural, enquanto experimenta no seu íntimo uma certa co-naturalidade,
seja na ordem natural seja como fruto da graça, com os ditos bens (Cf. S. Tomás,
Summa Theol. II-II, q. I, a. 4, ad 3;
e q. 45, a. 2, in c.); e é manifesto quanto este conhecimento, embora
subconsciente, ajude a razão nas suas investigações. Mas uma coisa é
reconhecer o poder que têm a vontade e as disposições da alma para ajudar a
razão a atingir um conhecimento mais certo e mais firme das verdades morais,
outra coisa é quanto vão espalhando esses inovadores, a saber: que a vontade e
o sentimento têm um certo poder intuitivo e que, não podendo o homem discernir
com certeza aquilo que deve abraçar como verdadeiro, se serve da vontade,
determinando por ela a sua livre escolha entre duas opiniões opostas,
confundindo assim indevidamente conhecimento e ato de vontade.
33. Não é de admirar que com essas novas teorias corram perigo as duas ciências filosóficas, por sua mesma natureza intimamente relacionadas com os ensinamentos da fé: a teodicéia e a ética. Pretendem as novas teorias que o papel de ambas não é o de demonstrar certas verdades sobre Deus ou outro ser transcendente, mas o de mostrar como sejam coerentes com a necessidade da vida as verdades que a fé ensina sobre Deus, Ente pessoal, e sobre os seus mandamentos, e que devem ser admitidas por todos, para evitarem o desespero e alcançarem a salvação eterna. Todas essas opiniões e teorias estão em franca oposição com os documentos emanados pelos Nossos Predecessores Leão XIII e Pio X, e com os decretos do Concílio Vaticano I. Seria supérfluo deplorar essas várias aberrações, se todos, ainda mesmo no campo das doutrinas filosóficas, se mostrassem dóceis e reverentes, como de dever, para com o Magistério da Igreja, a qual por instituição divina recebeu a missão não só de guardar e interpretar o depósito da fé, mas ainda de vigiar o campo das disciplinas filosóficas, a fim de que o dogma católico não receba de opiniões menos sensatas nenhum dano.