ACERCA DAS SETE PALAVRAS PRONUNCIADAS POR CRISTO NA
CRUZ
(DE SEPTEM VERBIS A CHRISTO IN CRUCE PROLATIS)
São Roberto Belarmino
Tradução:
Permanência
CAPÍTULO I
Explicação literal da primeira Palavra:
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”
Cristo Jesus, o Verbo do Pai Eterno, de quem o mesmo Pai
dissera: “Ouvi-o”[21], e que dissera de si mesmo:
“Porque um só é o vosso Mestre”[22], para realizar a
tarefa que assumira, nunca deixou de nos instruir. Não somente durante sua
vida, mas até nos braços da morte, do púlpito da Cruz, pregou-nos poucas
palavras, mas ardentes de amor, de suma utilidade e eficácia, e em todo o
sentido dignas de ser gravadas no coração de qualquer cristão, para ser aí
preservadas, meditadas, e realizadas literalmente e em obra. Sua primeira
palavra é esta: “E Jesus dizia: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que
fazem”[23]. Prece que, conquanto nova e nunca antes
ouvida, quis o Espírito Santo fosse predita pelo Profeta Isaías nestas
palavras: “e pelos transgressores fez intercessão”[24].
E as petições de Nosso Senhor na Cruz provam quão verdadeiramente falou o Apóstolo
São Paulo quando disse: “a caridade [...] não busca os seus próprios
interesses”[25], pois, das sete palavras que pronunciou
nosso Redentor, três foram pelo bem dos demais, três por seu próprio bem, e
uma foi comum tanto para Ele como para nós. Sua atenção, porém, foi primeiro
para os demais. Pensou em si mesmo ao final.
Das três primeiras palavras que Ele disse, a primeira foi
para seus inimigos, a segunda para seus amigos, e a terceira para seus parentes.
Pois bem, a razão por que orou, então, é que a primeira demanda da caridade
é socorrer aqueles que estão necessitados, e aqueles que estavam mais
necessitados de socorro espiritual eram seus inimigos, e o de que nós, discípulos
de tão grande Mestre, mais necessitamos é amar nossos inimigos, virtude que
sabemos muito difícil de obter e que raramente encontramos, ao passo que o amor
a nossos amigos e parentes é fácil e natural, cresce com os anos e muitas
vezes predomina mais do que deveria. Razão por que escreveu o Evangelista: “E
Jesus dizia”[26], onde a palavra “e” manifesta o tempo
e a ocasião desta oração por seus inimigos, e põe em contraste as palavras
do Sofrente e as palavras dos verdugos, Suas obras e as obras deles, como se o
Evangelista quisesse explicar-se melhor desta maneira: estavam crucificando o
Senhor, e em sua mesma presença estavam repartindo sua túnica entre si,
zombavam-no e difamavam como embusteiro e mentiroso, ao passo que Ele, vendo o
que estavam fazendo, escutando o que estavam dizendo, e sofrendo as mais agudas
dores nas mãos e nos pés, pagou com bem o mal, e orou: “Pai, perdoa-lhes”.
Chama-Lhe “Pai”, não Deus ou Senhor, porque quis que
Ele exercesse a benignidade do Pai e não a severidade de um Juiz, e, como quis
Ele evitar a cólera de Deus, que sabia provocada pelos enormes crimes, usa o
terno nome de Pai. A palavra Pai parece conter em si mesma este pedido: Eu, Teu
Filho, em meio de todos os meus tormentos, os perdoei. Faz Tu o mesmo, Pai Meu,
estende Teu perdão a eles. Conquanto não o mereçam, perdoa-lhes por Mim, Teu
Filho. Lembra-te também de que és seu Pai, pois os criaste, fazendo-os à Tua
imagem e semelhança. Mostra-lhes, portanto, um amor de Pai, pois, conquanto
sejam maus, são porém filhos Teus.
“Perdoa”. Esta palavra contém a petição principal
que o Filho de Deus, como advogado de seus inimigos, faz a Seu Pai. A palavra
“perdoa” pode referir-se tanto ao castigo devido ao crime como ao crime
mesmo. Se está referida ao castigo devido ao crime, foi então a oração
escutada: pois, já que este pecado dos judeus demandava que seus perpetradores
sentissem instantânea e merecidamente a ira de Deus, sendo consumidos por fogo
do céu ou afogados num segundo dilúvio, ou exterminados pela fome e pela
espada, ainda assim a aplicação deste castigo foi posposta por quarenta anos,
período durante o qual, se o povo judeu tivesse feito penitência, teria sido
salvo e sua cidade, preservada, mas, dado que não fizeram penitência, Deus
mandou contra eles o exército romano, que, durante o reino de Vespasiano,
destruiu suas metrópoles e, parte de fome durante o sítio, parte pela espada
durante o saque da cidade, matou grande multidão de seus habitantes, enquanto
os sobreviventes eram vendidos como escravos e dispersos pelo mundo.
Todas estas desgraças foram preditas por Nosso Senhor nas
parábolas do vinhateiro que contratou obreiros para sua vinha, do rei que fez
uma boda para seu filho, da figueira estéril, e, mais claramente, quando chorou
pela cidade no Domingo de Ramos. A oração de Nosso Senhor foi também escutada
se é que fazia referência ao crime dos judeus, pois obteve para muitos a graça
da compunção e da reforma da vida. Houve alguns que “retiravam-se, batendo
no peito”[27]. Houve o centurião que disse “Na verdade
este era filho de Deus”[28]. E houve muitos que algumas
semanas depois se converteram pela pregação dos Apóstolos, e confessaram
Aquele que tinham negado, adoraram Aquele que tinham desprezado. Mas a razão
por que a graça da conversão não foi outorgada a todos é que a vontade de
Cristo se conforma à sabedoria e à vontade de Deus, que São Lucas manifesta
quando nos diz nos Atos dos Apóstolos: “E creram todos os que eram
predestinados para a vida eterna”[29].
“[Perdoai-]Lhes”. Esta palavra é aplicada a todos por
cujo perdão Cristo orou. Em primeiro lugar é aplicada àqueles que realmente
pregaram Cristo na Cruz, e repartiram seus vestidos lançando sortes. Pode ser
também estendida a todos os que foram causa da Paixão de Nosso Senhor: a
Pilatos, que pronunciou a sentença; às pessoas que gritaram: “Seja
crucificado. [...] Seja crucificado”[30]; aos sumos
sacerdotes e escribas que falsamente o acusaram, e, para ir mais longe, ao
primeiro homem e a toda a sua descendência, que por seus pecados ocasionaram a
morte de Cristo. E assim, de sua Cruz, Nosso Senhor orou pelo perdão de todos
os seus inimigos. Cada um, porém, se reconhecerá a si mesmo entre os inimigos
de Cristo, de acordo com as palavras do Apóstolo: “sendo nós inimigos, fomos
reconciliados com Deus pela morte de seu Filho”[31].
Portanto, nosso Sumo Sacerdote, Cristo, fez uma comemoração para todos nós,
até antes de nosso nascimento, naquele sacratíssimo “Memento”, se assim o
posso dizer, que Ele fez no primeiro Sacrifício da Missa que celebrou no altar
da Cruz. Que retribuição, ó alma minha, farás ao Senhor por tudo o que fez
por ti, ainda antes de que fosses? Nosso amado Senhor viu que tu também algum
dia estarias nas fileiras de Seus inimigos, e, conquanto não o tivesses pedido,
nem o tivesses buscado, Ele orou por ti a Seu Pai, para que não carregasse
sobre ti a falta cometida por ignorância. Não te importa, portanto, ter em
conta tão doce Protetor, e fazer todo o esforço por servi-Lo fielmente em
tudo? Não é justo que com tal exemplo diante de ti aprendas não só a perdoar
a teus inimigos com facilidade, e a orar por eles, mas até a atrair quantos
possas a fazer o mesmo? É justo, e isto desejo e tenho o propósito de fazer,
com a condição de que Aquele que me deu tão brilhante exemplo me dê também
em sua bondade a ajuda suficiente para realizar tão grande obra.
Pois não sabem o que fazem. Para que sua oração seja
razoável, Cristo diminui-se, ou, mais ainda, dá a desculpa que possa pelos
pecados de seus inimigos. Ele certamente não podia desculpar a injustiça de
Pilatos, ou a crueldade dos soldados, ou a ingratidão da gente, ou o falso
testemunho daqueles que perjuraram. Então, não restou a Ele mais que
desculpar-lhes a falta alegando ignorância. Pois com verdade o Apóstolo
observa: “porque, se a tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor
da glória”[32]. Nem Pilatos, nem os sumos sacerdotes, nem
o povo sabiam que Cristo era o Senhor da Glória. Ainda assim, Pilatos o sabia
um homem justo e santo, que fora entregue pela inveja dos sumos sacerdotes, e os
sumos sacerdotes sabiam que Ele era o Cristo prometido, como ensina Santo Tomás,
porque não podiam — nem o fizeram — negar que tinha operado muitos dos
milagres que os profetas tinham predito que o Messias operaria. Enfim, a gente
sabia que Cristo tinha sido condenado injustamente, pois Pilatos publicamente
lhe dissera: “não encontrei nele culpa alguma”[33], e
“Eu sou inocente do sangue deste justo”[34].
Mas, conquanto os judeus, tanto o povo como os sacerdotes,
não soubessem o fato de que Cristo era Senhor da Glória, ainda assim não
teriam permanecido neste estado de ignorância se sua malícia não os tivesse
cegado. De acordo com as palavras de São João: “E, tendo ele feito tantos
milagres em sua presença, não criam nele, para se cumprir a palavra do profeta
Isaías, quando disse: [...] Obcecou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração
para que não vejam com os olhos e não entendam com o coração, e não se
convertam, e eu não os sare”[35]. A cegueira não é
desculpa para um homem cego, porque é voluntária, acompanhando, não
precedendo, o mal que faz. Da mesma maneira, aqueles que pecam na malícia de
seus corações sempre podem alegar ignorância, o que não é porém desculpa
para seu pecado, pois não o precede, senão que o acompanha. Razão por que o
Homem Sábio diz: “Os que praticam o mal erram”[36]. O
filósofo, de igual modo, proclama com verdade que todo o que faz mal é
ignorante do que faz, e por conseguinte se pode dizer dos pecadores em geral:
“Não sabem o que fazem”. Pois ninguém pode desejar aquilo que é mau com
base em sua maldade, porque a vontade do homem não tende para o mal tanto como
para o bem, mas sim só ao que é bom, e por esta razão aqueles que escolhem o
que é mau o fazem porque o objeto lhes é apresentado sob aparência de bem, e
assim pode então ser escolhido. Isto é resultado do desassossego da parte
inferior da alma, que cega a razão e a torna incapaz de distinguir nada que não
seja bom no objeto que busca. Assim, o homem que comete adultério ou é culpado
de roubo realiza estes crimes porque olha só o prazer ou o ganho que pode
obter, e não o faria se suas paixões não o cegassem até ou à vergonhosa infâmia
do primeiro e à injustiça do segundo. Um pecador, portanto, é similar a um
homem que deseja lançar-se a um rio de um lugar elevado. Primeiro fecha os
olhos e depois se lança de cabeça; assim, aquele que faz um ato de maldade
odeia a luz, e atua sob uma voluntária ignorância que não o desculpa, porque
é voluntária. Mas, se uma voluntária ignorância não desculpa o pecador, por
que então Nosso Senhor orou: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”?
A isto respondo que a interpretação mais direta por fazer das palavras de
Nosso Senhor é que foram ditas para seus verdugos, que provavelmente ignoravam
de todo não só a Divindade do Senhor mas até sua inocência, e simplesmente
realizaram o labor do verdugo. Para eles, portanto, disse em verdade o Senhor:
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
Uma vez mais, se a oração de Nosso Senhor há de ser interpretada como aplicável a nós mesmos, que ainda não tínhamos nascido, ou àquela multidão de pecadores que eram seus contemporâneos mas que não tinham conhecimento do que estava sucedendo em Jerusalém, então disse com muita verdade o Senhor: “não sabem o que fazem”. Finalmente, se Ele se dirigiu ao Pai em nome de todos os que estavam presentes e sabiam que Cristo era o Messias e um homem inocente, então devemos confessar a caridade de Cristo, que é tal, que deseja atenuar o mais possível o pecado de seus inimigos. Se a ignorância não pode justificar uma falta, pode porém servir como desculpa parcial, e o deicídio dos judeus teria tido caráter mais atroz se conhecessem a natureza de sua Vítima. Conquanto Nosso Senhor fosse consciente de que tal não era uma desculpa, mas antes uma sombra de desculpa, apresentou-a com insistência, em verdade, para mostrar-nos quanta bondade sente com relação ao pecador, e com quanto desejo teria Ele usado uma melhor defesa, até para Caifás e Pilatos, se uma melhor e mais razoável apologia se tivesse apresentado.
Notas:
[21] Mt
17,5.
[22] Mt 23,10.
[23] Lc 23,34.
[24] Is 53,12.
[25] 1Cor 13,5.
[26] Lc 23,34.
[27] Lc 23,48.
[28] Mt 27,54.
[29] Atos 13,48.
[30] Mt 27,23.
[31] Rom 5,10.
[32] 1Cor 2,8.
[33] Lc 23,14.
[34] Mt 27,24.
[35] Jo 12,37-40.
[36] Prov 13,22.
Segue ao Cap. 2 |