PADRE MANUEL BERNARDES (1644-1710)
O Padre Manuel Bernardes,
oratoriano, nasceu em Lisboa. São de Mendes dos Remédios as palavras
seguintes: “Vieira e Bernardes [...] distanciaram-se na prédica como na vida.
Vieira foi um lutador; a sua vida prende-se por mais de um laço à história
política de Portugal; Bernardes viveu o melhor e maior tempo da sua vida — 36
anos — entregue à meditação e à redação dos seus livros na pobre cela da
Congregação do Oratório. Lendo-os com atenção, escreve Antônio Feliciano
de Castilho, sente-se que Vieira, ainda falando do Céu, tinha os olhos nos seus
ouvintes; Bernardes, ainda falando das criaturas, estava absorto no Criador.
Vieira vivia para fora, para a cidade, para a corte, para o mundo; Bernardes,
para a cela, para si, para o seu coração. Vieira estudava galas e louçainhas
de estilo. Bernardes era como estas formosas de seu natural, que se não cansam
com alindamentos, a quem tudo fica bem, que brilham mais com uma flor apanhada
ao acaso do que outras com pedrarias de grande custo.”
A coleção das obras do Padre
Manuel Bernardes compreende dezenove volumes, entre os quais se contam os Sermões
e Práticas, os Exercícios Espirituais e Meditações da Vida Purgativa,
Os Últimos Dias do Homem, os Tratados Vários, em cujo 2º
tomo entra o Pão Partido em Pequeninos, alguns opúsculos e as suas
melhores obras, Luz e Calor e a Nova Floresta. Durante o largo período
em que viveu na Congregação do Oratório, o Padre Bernardes não cessou de
trabalhar, até perder a vista e a lucidez dois anos antes de morrer.
As Jaculatórias que transcrevemos
a seguir se encontram no fim da Segunda Parte de Luz e Calor.
* * *
O P Ú S C U L O V
ORAÇÕES JACULATÓRIAS, OU SETAS ESPIRITUAIS PARA
ATIRAR AO CÉU E FERIR O CORAÇÃO DE DEUS
O modo de exercitar esta
Oração dissemos acima na Doutrina VII. Agora damos alguns exemplos, ou fórmulas
das Jaculatórias; não para que a alma devota se ate a palavras certas, e as
profira mais como lição decorada na memória do que como parto afetuoso da
vontade; senão para que, à vista destes exemplos, conheça melhor o modo de as
fazer, e adestre o seu arco. Vão repartidas em três como aljavas, conforme as
três vias do Espírito, Purgativa, Iluminativa e Unitiva (que Molinos
impiamente chamava o maior disparate da Mística); e assim podemos dizer que as
primeiras são de ferro, as segundas de prata, e as terceiras de ouro; se bem
aquelas ferirão mais altamente o coração de Deus que procederem de maior auxílio
de sua graça, e maior intenção da nossa caridade. Se o Leitor achar em alguma
aljava seta que parece pertencer mais propriamente a outra, não forme disso
reparo, porque estas coisas morais pouco importa se não pesem ouro fio com os
escrúpulos da balança Teológica.
1º —
GEMIDOS DA ALMA PENITENTE
PARA OS PRINCIPIANTES
DÉCADA I
405
— Senhor Deus: eu sou a miséria, a ingratidão, a indignidade; sou um pecador
vilíssimo, a quem não devia cobrir o Céu nem sustentar a Terra. Havei de mim
misericórdia, e salvai-me por amor de vossa bondade.
Pai: pequei contra o Céu,
e em vossa presença; não sou digno de me chamar filho vosso; fazei-me como
qualquer de vossos mercenários.
Lavai-me, meu Senhor Jesus
Cristo, nas correntes de Vosso precioso Sangue; e limpai minha alma das manchas
de todo o pecado.
Desgarrei-me como ovelha
perdida. Que fora de mim, ó bom Pastor, se me não buscásseis, e tomásseis
sobre vossos ombros?
Eis aqui está à vossa
porta o pobre: eis aqui o leproso e cego, e tolhido, e coberto de inumeráveis
chagas. Não necessitam de médico os sãos, mas os enfermos; vinde, e curai-me
com a vossa palavra, para glória de vosso nome.
Que era eu, Senhor, no
meio de meus vícios, e fora de vossa graça, senão um cão morto, coberto das
moscas dos demônios, que em minha podridão se cevavam. Vistes minha miséria,
e vos apiedastes. Destes-me vida e misericórdia. Oh, bendito seja tal amor!
Inclinai, Senhor, para mim
vossos amorosos olhos, e apagai meus pecados. Concedei-me a graça da renovação
de meu espírito, com uma vida totalmente conforme à vossa lei.
Deus meu: proponho
firmemente, com o auxílio de vossa graça, não admitir jamais ofensa vossa.
Oh! não mais pecar, não mais desprezar vossos preceitos; guardá-los, sim,
mais que as meninas dos meus olhos.
Senhor: alcance eu de vós
esta mercê; que, no ponto em que certamente hei de cair de vossa graça, antes
caia morto de repente; porque viver com injúria vossa pior morte é que a mesma
morte, e maior desgraça que o inferno.
Jesus amorosíssimo, Jesus
minha Redenção e remédio: de tantas lágrimas que andando neste mundo
chorastes, dai-me uma para que amoleça este coração, e o derreta pelos olhos.
Dai-me uma lágrima vossa, para que a apresente a vosso Eterno Padre em remissão
de meus pecados.
DÉCADA
II
406
— Não entreis, Senhor, em juízo com vosso servo; porque nenhum vivente se
justificará diante de vós. De mil cargos que me fizerdes, não poderei
responder a um só. Todo me entrego nos braços de vossa misericórdia.
Que maldade há no mundo tão
execrável, que eu não esteja pronto para a cometer? Senhor, amarrai com as
cadeias de vosso santo temor as fúrias de minha liberdade; porque sou capaz de
tornar a crucificar-vos.
Isto me pasma, Senhor:
como não respeitei vossa presença! Como não temi vossa indignação! Como me
não compadeci de vossas dores! Como pisei vosso Sangue! Como não correspondi a
tanto amor! Não pode haver maior cegueira.
Pecaste, alma minha:
diz-me, agora, que fruto tiraste do teu pecado? Amaste as criaturas mais que ao
Criador: que te ficou rendendo esta desordem? Perda da amizade de Deus, e do
direito à sua glória, remorso de consciência, costume de tornar a pecar,
escravidão ao demônio, reato da culpa, dívida da pena eterna. Oh, quem dera
rios de lágrimas a meus olhos, para lamentar tão grave desgraça!
Vinde, vinde, Senhor, ao
meu coração; formai um azorrague das cordas de vosso amor e temor, e lançai
daqui todos os maus afetos que profanam a vossa casa.
Rogo-vos, meu Jesus, por
aquele primeiro leite que bebeste nos peitos virginais de vossa Mãe Santíssima;
e por aquelas sagradas primícias de vosso Sangue, que derramastes na Circuncisão,
que não permitais que jamais caia de vossa graça nem esteja um ponto fora
dela.
Pequei mais que o número
das areias do mar. Porém, Senhor, as vossas misericórdias não têm número.
Em vós ponho toda a minha esperança: não padecerei confusão eterna.
Eu a pecar; vós, Senhor,
a perdoar-me. Eu a fazer-vos injúrias; vós a fazer-me benefícios. O certo é,
Senhor, que cada um obra como quem é. Bendita seja vossa paciência, que tanto
me esperou.
Muito agravado estais de
mim, e vos sobra razão. Oh, quem para aplacar-vos tivera as lágrimas de uma
Madalena, as penitências de uma Egipcíaca, os gemidos de um Agostinho, a
compunção de um S. Pedro!
Ah, pecador atrevido e
infame! Tu foste o que açoutaste a JESUS, tu o que o coroaste de espinhos; o
que lhe lançaste salivas no rosto, o que o pregaste na Cruz. Como te não
confundes?
DÉCADA
III
407
— Lembrai-vos, Senhor, que sou obra de vossas mãos; lembrai-vos que vos
custei muito na Cruz. Não entregueis às bestas infernais as almas que vos
confessam.
Não me dirás, alma
minha, que males te fez teu Deus, para que assim o ofendesses? Acaso foi crime o
morrer por ti de amor em uma Cruz? Porventura te agravou em querer salvar-te, e
dar-te o Reino de sua Glória? Que razão posso dar, Senhor, do pecado, que é a
mesma sem-razão? Misericórdia.
Ora pazes, Senhor; pazes
para sempre; fiz mal, assim o confesso diante do Céu e da Terra. Não farei
mais; perdoai-me por quem sois.
Vaidade de vaidades, e
tudo vaidade. Que me pode render o amor do mundo, e todas as suas coisas, senão
deleite falso, que em um momento passa; tormento verdadeiro, que em uma
eternidade não passa?
Que fará um desgraçado a
quem a morte colheu em pecado mortal e sepultou nas profundezas? Oh, que
gemidos! Oh, que ânsias! Oh, que remorsos! Oh, que desesperações! Oh, que incêndios!
Tu não puderas já ser este? Quanto devo, Senhor, à vossa paciência! Bendita
seja eternamente.
Não dissestes vós,
Senhor, que havia grande festa e alegria no Céu quando algum pecador se
convertia? Eia, amorosíssimo Jesus, fazei com vossa graça que seja eu o
assunto desta alegria e festa.
Eis-me, aqui Senhor, que
sou o filho pródigo, e dissipei a substância de vossa graça, e andei na região
remota de vossa presença, apascentando os animais imundos de meus apetites; já
torno para vossa graça, lançai-me os braços de vossa caridade.
Oh, banhe-me esse precioso
Sangue, que com tanto amor derramastes pelos pecadores! Banhe-me todo com um
perfeito batismo, e ficarei mais alvo que a neve.
Senhor Deus: aqui nesta
vida me castigai, aqui me abrasai, contanto que me perdoeis eternamente. Não
queirais, Senhor, entesourar contra mim vossa ira; não me guardeis para a outra
vida a satisfação de vossa justiça.
Oh, horas preciosas dadas
para servir e amar a Deus, e empregadas em ofendê-lo! Quem nunca houvera
nascido para tanto mal! Ou quem de novo tornara a nascer, para o emendar!
DÉCADA
IV
408
— Oh, que cego andava eu Senhor, pois estava sem vós, e vós sois Luz! Oh,
como ia errado, pois estava fora de vós, e vós sois Caminho! Oh, que
nesciamente procedia, pois estava sem vós, e vós sois Sabedoria! Oh, como
estava morto, pois estava sem vós, e vós sois vida!
Nada sou, nada valho, nada
posso senão ofender-vos, e precipitar-me no inferno. Esta mesma verdade que
agora conheço, se afastares vossa luz, me ficará oculta; e sobre tantas misérias
minhas se acrescentará outra, de as não conhecer.
Oh, alma minha, em que te
ocupas, em que te enredas? O teu Jesus coroado de espinhos, e tu de flores? Ele
suando Sangue, e tu buscando refrigérios? Ele farto de opróbrios, tu faminta
de honras? Oh, confusão! Mudemos de vida; tomemos a Cruz; sigamos os passos de
Cristo.
De quantos bens me destes,
Senhor, usei mal, e em ofensa vossa. Se me fizésseis Anjo, creio que já também
fora demônio. Oh, quem tivera digno sentimento de tão enormes excessos,
verdadeira dor de pecados tão graves!
O ofício que tomei,
Senhor, foi o de pecar; e neste me exercitei com toda a diligência, estudando
muito de propósito na maldade. Oh, que bem concordava isto com o fim para que vós
me criastes, que é amar-vos, e gozar-vos eternamente! Só vós, que sois
infinito em bondade, podereis sofrer tanto.
Onde me esconderei,
Senhor, até que passe a vossa ira? Fugirei de vós para vós mesmo; de vós,
reto Juiz, para vós, Pai clementíssimo. Em vossas chagas me recolho, que este
é o sagrado que vale aos que vão fugindo à vossa justiça.
Oh, quanta foi até agora
minha negligência e descuido! O tempo que me concedestes para a penitência,
desperdicei-o; os auxílios de vossa graça, rejeitei-os; às vozes com que me
chamáveis me fiz surdo. E agora, Senhor, que hei de fazer? Pesa-me de haver
pecado; havei de mim misericórdia, misericórdia.
Que dormisse eu tão
seguro sobre a vossa ofensa, pendurado do fio da vida sobre a boca do inferno!
Grande temeridade a minha! Senhor, dai-me entendimento, e viverei amando-vos e
servindo-vos.
Oh, se eu já desprezasse
o mundo como ele merece! Oh, se metera debaixo dos pés todas as coisas
terrenas! Oh, se somente fizera estimação das eternas!
Afastai, Senhor, vosso
rosto de meus pecados; e apagai e extingui todas as minhas iniqüidades. Criai
em mim um coração novo; e renovai o espírito reto em minhas entranhas.
DÉCADA
V
409
— Sei que hei de aparecer em vosso tribunal; sei que hei de dar-vos estreita
conta de toda a minha vida. Não me atrevo, Senhor, a suportar vossos olhos
irados. Ordenai agora minha vida, de modo que não desmereça então vê-los
benignos.
Aqui vos mostro, Senhor,
todas as minhas chagas. Vede como são muitas, como são profundas, como são
envelhecidas? Ó médico Divino, sarai as minhas chagas com as vossas; que, para
os filhos de Adão estarem sãos, quis o Filho de Deus estar chagado.
Não te desalentes, Alma
minha, com a enormidade e multidão de teus pecados. Espera sempre em Deus até
à noite cerrada da tua morte; que em Deus há infinita misericórdia e redenção
copiosa.
Ajudai-me, Deus Salvador
meu; livrai-me por amor da glória do vosso nome. Não vos lembreis de minhas
maldades; submergi-as no mar de vossa bondade imensa.
Olha, Alma minha, olha
para teu Deus posto por ti em uma Cruz, eis ali o que perdoa, e apaga os teus
pecados. Vê quanto padeceu por te salvar; vê com que fina caridade te ama.
Guarda-te de jamais tornar a ofendê-lo.
A vós, Senhor, que sois
dulcíssimo Esposo de minha alma, desprezei-vos; ao demônio, que é adúltero,
fiz-lhe a vontade. Tomara morrer de sentimento de tão feia desordem. Tomara
chorar de dia e de noite tão execranda maldade.
Que tenho eu com o mundo,
que passa como figura? Que tenho eu com a carne, que murcha como flor? Que tenho
com as coisas transitórias, que tudo é engano, perigo, trabalho, vaidade? Eia,
eia, salvemos a alma nas tabuas da Cruz, fazendo penitência.
Oh, momento do qual pende
a eternidade! Só quem te não considera te não teme. Abri-me, Senhor, os olhos
da alma, não me suceda adormecer no letargo da morte eterna.
Senhor, aqui venho fugindo
de meus inimigos: abri-me as portas de vossa misericórdia. Recolhei o vosso
fugitivo, meu Deus; recolhei-me depressa, que meus inimigos me vêm ao alcance.
Dulcíssimo Jesus: o vosso
soberano nome quer dizer Salvador; obrai em mim conforme vosso nome e salvai-me.