A IGREJA E O PAPA EM TODOS OS TEMPOS E EM NOSSO TEMPO
R.T. Calmel O.P.
Em uma conjuntura tão perigosa, será ainda possível ao simples fiel, ao modesto padre do campo ou da cidade, ao religioso que se sente cada dia mais isolado dentro de sua ordem; será possível à religiosa que se pergunta se ela não foi mistificada em nome da obediência; será possível a todas estas ovelhinhas do imenso rebanho de Jesus Cristo e de seu vigário não perderem a cabeça, resistirem a um imenso aparelho que os induz, progressivamente, a mudar de fé, mudar de culto, mudar de hábito religioso e de vida religiosa, em uma palavra mudar de religião?
Gostaríamos de repetir para nós mesmos com toda a doçura e acerto as palavras de verdade, as palavras simples da doutrina sobrenatural aprendidas no catecismo, que não agravassem o mal mas antes nos persuadissem profundamente, pelo ensinamento da Revelação, de que Roma, um dia, será curada; de que a Igreja que vemos, em breve perderá sua aparência de autoridade. Logo essa igreja se transformará em poeira, pois sua principal força vem de sua mentira intrínseca que passa por verdade, sem nunca ter sido efetivamente desmentida de cima. Gostaríamos, no meio de tão grande catástrofe, de nos dizer palavras que não estivessem muito defasadas com o misterioso discurso, sem ruído de palavras, que o Espírito Santo murmura no coração da Igreja.
1 —Mas por onde começar? Sem dúvida pela lembrança da verdade primeira que diz respeito ao senhorio de Jesus Cristo sobre sua Igreja. Ele quis uma Igreja que tivesse à frente o bispo de Roma, que é seu vigário visível e, ao mesmo tempo, bispo dos bispos e de todo o rebanho. Conferiu-lhe a prerrogativa da pedra a fim de que o edifício não ruísse nunca. Pediu, em uma oração eficaz, que seu vigário, ao menos, entre todos os bispos, não naufragasse na fé de sorte que, tendo-se recuperado depois de quedas das quais não seria necessariamente preservado, confirmasse por fim seus irmãos na fé; ou então, se não for ele em pessoa que fortaleça seus irmãos na fé, que seja um de seus primeiros sucessores.
Tal é sem dúvida o primeiro pensamento de conforto que o Espírito Santo sugere a nossos corações nestes dias desolados em que Roma está parcialmente invadida pelas trevas: não há Igreja sem vigário do Cristo infalível e detentor da primazia. Por outro lado, quaisquer que sejam as misérias, mesmo no domínio religioso, deste vigário visível e temporário de Jesus Cristo, é o próprio Jesus quem governa sua Igreja, que governa seu vigário no governo da Igreja; que governa seu vigário de tal maneira que este não possa comprometer sua autoridade suprema nas desordens ou cumplicidade que mudariam a religião. — Até aí se estende, em virtude da Paixão soberanamente eficaz, a força divina da regência do Cristo subido ao céu. Ele conduz sua Igreja tanto de dentro como de fora e domina sobre o mundo inimigo. Faz sentir seu poder a este mundo perverso, mesmo e sobretudo quando os operários da iniqüidade, como o modernismo, não somente penetram na Igreja, mas pretendem se fazer passar pela própria Igreja.
Pois a astúcia do modernismo se desdobra em dois tempos: primeiro promovendo a confusão entre as autoridades paralelas heréticas com a hierarquia regular, da qual puxa os fios; em seguida servindo-se de uma dita pastoral universalmente reformadora que cala ou que esquerdiza, por sistema, a verdade doutrinal; que recusa os sacramentos ou que torna seus ritos duvidosos. A grande habilidade do modernismo é utilizar esta pastoral do Inferno para, ao mesmo tempo, deturpar a doutrina santa confiada pelo Verbo de Deus à sua Igreja hierárquica, e depois alterar e mesmo anular os sinais sagrados portadores de graças, dos quais a Igreja é a dispensadora fiel.
O Chefe da Igreja é sempre infalível, sempre sem pecado, sempre santo, ignorando qualquer intermitência e qualquer interrupção em sua obra de santificação. Este é o único Chefe, pois todos os outros, incluindo o mais elevado, só detêm a autoridade por ele e para ele. Ora este Chefe santo e sem mancha, absolutamente apartado dos pecadores, elevado acima dos céus, não é o papa, é aquele do qual nos fala magnificamente a Epístola aos Hebreus, é o Soberano Padre: Jesus Cristo. Jesus nosso redentor pela cruz, antes de subir aos céus, de se tornar invisível a nossos olhos, quis estabelecer em sua Igreja, além e acima dos numerosos ministros particulares, um ministro universal único, um vigário visível, que é o único a exercer a jurisdição suprema. Ele o cumulou de prerrogativas: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão sobre ela”. (Mat. XVI, 18-19) — “Sim, Senhor, sabeis que vos amo. Jesus lhe diz: “Apascenta meus cordeiros... Apascenta minhas ovelhas”. (Jo., XXI, 16-18) Pedi por ti a fim de que não percas a fé, e tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos”. (Luc., XXII, 32).
Ora, se o papa é o vigário visível de Jesus que subiu ao céu invisível, não é nada mais do que o vigário: “vices gerens” aquele que substitui, mas continua outro. Não é do papa que deriva a graça que faz viver o corpo místico. A graça, tanto para o papa como para nós, deriva do único Senhor Jesus Cristo. A mesma coisa quanto à luz da revelação. O papa detém, a título único, a guarda dos meios da graça, os sete sacramentos, como também a verdade revelada. É assistido de modo único, para ser o guardião e intendente fiel. Mas, para que sua autoridade receba uma assistência privilegiada, é preciso que ele não renuncie a exercê-la ... Por outro lado, se o papa está preservado de falha quando empenha sua autoridade enquanto infalível, pode muito bem falhar em outros casos. Se o papa falha, bem entendido no que comporta sua falibilidade, isto não impede o chefe único da Igreja, o Soberano Padre invisível, de continuar a governar sua Igreja; isto não muda nem a eficácia de sua graça, nem a verdade de sua lei; isto não o tornará impotente para limitar as falhas de seu vigário visível nem para substituí-lo logo por um novo e digno papa, para reparar o que o predecessor deixou estragar ou destruiu, pois a duração da insuficiência e das fraquezas, e mesmo das traições parciais de um papa, não ultrapassam a duração de sua existência mortal. Desde que subiu ao céu, foi assim que Jesus escolheu e providenciou duzentos e sessenta e três papas. Na verdade, somente um pequeno número deles foram vigários de tal forma fiéis que os invocamos como amigos de Deus e santos intercessores. Um número ainda mais reduzido caiu em faltas muito graves. No entanto, a maioria dos vigários de Cristo foram apenas convenientes. Nenhum deles, continuando ainda papa, traiu e não poderá trair até a heresia, explicitamente ensinada com a plenitude de sua autoridade. Sendo esta a situação de cada papa e da sucessão de papas em relação ao Soberano Padre Jesus Cristo, em relação ao chefe da Igreja que reina no céu, é preciso que as fraquezas de um papa não nos façam esquecer, por pouco que seja, a solidez e a santidade do senhorio de nosso Salvador, impedindo-nos de ver o poder de Jesus e sua sabedoria a qual mantém nas suas mãos até os papas insuficientes, cujas insuficiências contém em limites que não se pode transpor.
2 — Mas para ter esta confiança no chefe invisível e soberano da santa Igreja, sem obrigar-nos a negar as faltas graves das quais não está isento seu vigário visível, o bispo de Roma; para pôr em Jesus esta confiança realista que não esconde o mistério do sucessor de Pedro com seus privilégios; para que o desânimo que pode nos sobrevir, provocado pelo detentor do papado, seja absorvido pela esperança teologal que colocamos no Soberano Padre, é preciso, evidentemente, que nossa vida interior seja toda referida a Jesus Cristo e não ao papa; que nossa vida interior seja baseada não na hierarquia e no papa, mas no Pontífice divino, neste padre que é o Verbo encarnado Redentor, cujo vigário visível dele depende ainda mais do que os outros padres; com efeito, o papa é sustentado pela mão de Jesus Cristo mais do que os outros, em vista de uma função que não tem equivalente. Mais do que qualquer outro, a título superior e único, ele não poderá deixar de confirmar seus irmãos na fé, ele mesmo ou seu sucessor.
A Igreja não é o corpo místico do papa; a Igreja, com o papa, é o corpo místico de Cristo. Quando a vida interior dos cristãos tem, cada vez mais, como ponto de referência Jesus Cristo, tais cristãos não ficam desesperados, mesmo que sofram até a agonia com as falhas de um papa, seja este Honório I ou os papas antagonistas do fim da Idade Média ou ainda, como extremo limite, um papa que fraqueje segundo as novas possibilidades de falhas oferecidas pelo modernismo. Para continuarem certo das prerrogativas papais, os cristãos não têm necessidade de mentir sobre as falhas de um papa, se tiverem em Jesus Cristo o princípio e a alma da vida interior. Sabem que estas falhas nunca atingirão a um tal grau que Jesus deixasse de governar sua Igreja por estar eficazmente impedido por seu vigário. Tal papa poderia se aproximar do ponto limite que implicaria em mudar a religião cristã, por cegueira ou por espírito de quimera ou por uma ilusão mortal quanto a uma heresia como o modernismo. O papa que a isto chegasse não tiraria do Senhor Jesus sua regência infalível que tem na mão o próprio papa transviado, impedindo-o de comprometer na perversão da fé, a autoridade que recebeu do alto.
Uma vida interior que tem como referencial Jesus Cristo e não o papa não poderia excluir o papa sem deixar de ser uma vida interior cristã. Uma vida interior que tem, como deve, sua referência no Senhor Jesus inclui o Vigário de Jesus Cristo e a obediência a esse Vigário, mas em primeiro lugar, servir a Deus: quer dizer que esta obediência, longe de ser incondicional, é sempre praticada na luz da fé teologal e da lei natural.
Vivemos por e para Jesus Cristo, graças a sua Igreja, que é governada pelo papa, a quem obedecemos em tudo o que é de sua competência. Não vivemos pelo e para o papa como se tivesse sido ele que nos adquiriu a redenção eterna; eis porque a obediência cristã não pode sempre e em tudo identificar o papa com Jesus Cristo. O que geralmente acontece é que o Vigário de Cristo costuma governar em conformidade com a tradição apostólica, o bastante para não provocar, na consciência dos fiéis dóceis, maiores conflitos. Mas algumas vezes pode ser de outro modo. Ainda que excepcionalmente, pode acontecer que o fiel tenha de se perguntar legitimamente: como guardarei a Tradição se seguir as diretivas deste papa?
A vida interior de um filho da Igreja que ponha de lado os artigos de fé relativos ao papa, a obediência a suas ordens legítimas e a oração por ele, tal vida interior deixa de ser católica. Por outro lado, uma vida interior que inclui ser agradável ao papa incondicionalmente, quer dizer, às cegas, em tudo e por tudo, é uma vida interior que está necessariamente entregue ao respeito humano, que não é livre em relação à criatura, que se expõe a facilidades e cumplicidades. Na sua vida interior, o verdadeiro filho da Igreja, tendo recebido de todo coração os artigos de fé que se referem ao Vigário de Cristo, reza fielmente por ele e lhe obedece de bom grado, mas somente às claras, isto é, estando salva e intacta a tradição apostólica e, bem entendido, a lei natural. — É verdade que muitas vezes pregou-se um tipo de obediência em relação ao papa em que se visava mais o sucesso de movimentos de conjunto do que a fidelidade à luz da fé, ainda que tivesse havido resultados espetaculares. Sem dúvida não estava ausente de tal pregação o cuidado de guardar a tradição apostólica e a fidelidade a Jesus Cristo, mas mais importante, mais altivo, mais urgente, era, apesar de tudo, dar satisfação a um homem, atrair-lhe os favores; muitas vezes fazer carreira, preparar a cabeça para o chapéu cardinalício ou dar brilho a sua Ordem ou Congregação. Mas nem Deus nem o serviço do papa têm necessidade de nossa mentira: Deus non eget nostro mendacio.
Lembremo-nos da grande prece do início do Cânon romano, este Cânon que Paulo VI não hesitou em aviltar, pondo-o no nível das preces polivalentes acomodadas às ceias calvinistas. (Equiparar deste modo o Cânon romano não tem o menor fundamento na tradição apostólica e se opõe de frente a esta tradição imprescritível). Assim o padre, no Cânon romano, depois de ter instantemente suplicado ao Pai clementíssimo por seu Filho Jesus Cristo, para santificar o sacrifício sem mancha oferecido unicamente pro Ecclesia tua santa catholica... continua assim: una cum famulo tuo Papa nostro... et Antistite nostro... A Igreja nunca pensou em dizer: una cum SANCTO famulo tuo Papa nostro et SANCTO Antistite nostro, mas diz: pro Ecclesia tua SANCTA. O papa, diferentemente da Igreja, não é obrigatoriamente santo. A Igreja é santa, com membros pecadores, que somos nós mesmos; membros pecadores que não tendem ou não tendem mais para a santidade. Pode muito bem acontecer que o próprio papa figure nesta triste categoria. Deus o sabe. Em todo o caso, já que a condição de chefe da Santa Igreja não é necessariamente a condição de um santo, não devemos nos escandalizar se sobrevierem provações, e às vezes provações muito cruéis para a Igreja, da parte de seu chefe visível. Não devemos nos escandalizar pelo fato de que, sujeitos embora ao papa, não possamos segui-lo às cegas, incondicionalmente, em tudo e por tudo. Na medida em que a nossa vida interior tiver como referência o chefe invisível da Igreja, o Senhor Jesus, soberano Padre; na medida em que nossa vida interior for alimentada com a tradição apostólica, com os dogmas, o missal e o ritual da tradição, com a tendência para o perfeito amor que é a alma desta tradição santíssima, nesta medida nós aceitaremos muito melhor ter de santificar-nos dentro de uma Igreja militante cujo chefe visível, se está preservado de errar segundo certos limites precisos, não está, no entanto, subtraído à condição comum de pecador.
3 — O Senhor governa de tal maneira sua Igreja pelo papa e a hierarquia, pela hierarquia submetida ao papa, que a Igreja é sempre protegida na tradição, conhecendo bem a tradição que é a sua, nunca inconsciente nem esquecediça. A Igreja é assistida de tal sorte sobre as verdades do catecismo, sobre a celebração do santo sacrifício e sobre os sacramentos, sobre a estrutura hierárquica fundamental, sobre os estados de vida e sobre o chamado ao perfeito amor, em suma, sobre todos os pontos maiores da tradição, que todo batizado, tendo a fé, seja bispo, papa ou simples fiel, sabe claramente onde se firmar. Assim, o simples cristão que se recusasse a seguir um padre, um bispo, uma colegialidade, ou mesmo um papa em algum ponto importante da tradição que estes arruinariam, este simples cristão que, nesse caso específico se recusasse a deixar-se levar e a obedecer, não estaria dando com isso, como alguns pretendem, sinais característicos de livre-exame ou orgulho de espírito; pois não é orgulho nem prova de insubmissão discernir a tradição que estes em seus pontos maiores, ou recusar a traí-la. Todo fiel sabe que é inadmissível que padres católicos celebrem a Missa manifestando falta de fé, como, por exemplo, sem marca alguma de adoração ou qualquer sinal de fé nos santos mistérios, ainda que a colegialidade de bispos ou o secretário de alguma congregação romana tenha feito manipulações para esse fim. Aquele que recusa ir a tal Missa, ou melhor, a tal culto que, na maior parte das vezes já deixou de ser Missa, não faz um livre-exame, não é um revoltado; é um fiel estabelecido em uma tradição que vem dos apóstolos e que ninguém na Igreja poderia mudar. Porque ninguém na Igreja, seja qual for a sua posição hierárquica, mesmo a mais alta, ninguém tem o poder de mudar a Igreja e a tradição apostólica.
Sei que muitas vezes, dá a impressão de ser farsante ou maníaco o padre que, não tendo adotado a reviravolta do missal e do ritual empreendida pelo atual pontífice romano (Paulo VI), ousa no entanto afirmar: estou com Roma, mantenho-me na tradição apostólica guardada por Roma. — Está com Roma, dizem-me alguns: ora veja! Mas qual é seu modo de batizar, de dizer a Missa? — O modo, digo-lhes, do próprio Paulo VI, até 1970; a maneira mais do que milenar sancionada pelo papas da Igreja Latina. Faço aquilo que eles fizeram unanimemente, quando mantenho os exorcismo do batismo solene; quando ofereço o santo sacrifício segundo um Ordo Missæ consagrado por quinze séculos e que nunca foi aceito pelos negadores do santo sacrifício. Se nós, enfim, ministros de Jesus Cristo que tratamos assim a Missa e os sacramentos, rompemos com Roma e com a tradição da qual Roma é a garantia, por que não fomos atingidos por sanções canônicas cujo cancelamento estivesse exclusivamente reservado ao vigário de Cristo? Escrevo isto porque é verdadeiro e porque espero confortar alguns fiéis que não chegam a compreender esta contradição evidente: estar com Roma seria adotar em matéria de fé ou de sacramento aquilo que destrói a tradição apostólica e aquilo em que ninguém pode precisar até que ponto o atual pontífice romano (Paulo VI) pretendeu comprometer sua autoridade? (Assim também, depois de 10 anos de Vaticano II, ninguém sabe até que ponto este concílio pastoral tem autoridade). Ainda uma vez a tradição apostólica é bem clara sobre todos os pontos principais. Não é preciso olhar por uma lupa nem ser cardeal ou prefeito de algum discatério romano para saber o que se lhe opõe. Basta ter aprendido o catecismo e a liturgia, anteriormente à corrupção modernista.
Muitas vezes, no que se refere a não romper com Roma, os fiéis e padres foram formados com um temor em parte mundano, de sorte que são tomados de pânico, vacilam em suas consciências e nada mais examinam assim que qualquer um acusa-os de não estar com Roma. Uma formação verdadeiramente cristã nos ensina, ao contrário, a preocuparmo-nos de estar com Roma não no pavor e sem discernimento, mas na luz e na paz, segundo um temor filial na fé.
4 — Que nos importa se os adversários zombam de nós, acusando-nos de não sabermos distinguir na tradição uma parte contingente e variável do que é essencial e irreformável? Suas zombarias só poderiam nos atingir se caíssemos no ridículo de darmos o mesmo valor a tudo o que pretenda fazer parte da tradição. Não é assim. Dizemos somente, e isto é a única coisa que nos importa, que, primeiramente, nos pontos principais da tradição, a Igreja é estável, certa, irreformável; depois, que todo cristão, ainda que só um pouco instruído em sua fé, conhece-os sem hesitar; terceiro, que é a fé, não o livre-exame, que nos permite discerni-los, assim como é a obediência, a piedade, o amor, não a insubordinação, que nos faz manter esta tradição; quarto, que as tentativas da hierarquia ou as fraquezas do papa que tenderam para destruir ou deixar destruir esta tradição, elas é que serão um dia destruídas, enquanto que a tradição triunfará. Estamos tranqüilos sobre este ponto: quaisquer que sejam as armas hipócritas postas pelo modernismo entre as mãos dos colegiados episcopais e do próprio vigário do Cristo, — armas do Inferno sobre as quais talvez se iludam — qualquer que seja a perfeição destas novas armas, a tradição (por exemplo, do batismo solene que inclui os anátemas contra o Diabo maldito) não ficará afastada por muito tempo; a tradição de não absolver em princípio os pecados senão depois da confissão individual não ficará abandonada por muito tempo; a tradição da Missa católica tradicional, latina gregoriana, com língua, cânon e conjunto de atitudes que sejam fiéis ao missal romano de São Pio V, esta tradição será, cedo, recolocada em posição de honra; a tradição do catecismo de Trento, ou de um manual que lhe seja exatamente conforme, ressurgirá sem tardar. Sobre os pontos principais do dogma, da moral, dos sacramentos, dos estados de vida, da perfeição a que somos chamados, a tradição da Igreja é conhecida por seus membros de todos os níveis. Aí se manterão eles (com a consciência tranqüila) mesmo se os guardiães hierárquicos desta tradição pretenderem intimidá-los ou lançá-los na dúvida; mesmo se os perseguirem com os ácidos refinamentos dos carrascos modernistas. Estão seguríssimos de que, mantendo a tradição, não cortam com o vigário visível de Cristo. Porque o vigário visível de Cristo é governado pelo Cristo de tal maneira que não possa transmutar a tradição da Igreja, nem fazê-la esquecer. Se por infelicidade tentar o contrário, ele mesmo ou seus sucessores imediatos serão obrigados a proclamar, alto e bom som, o que permanece para sempre vivo na memória da Igreja: a tradição apostólica. A Esposa de Cristo não corre o risco de perder a memória.
Quanto aos que dizem, a esse respeito, que tradição é sinônimo de esclerose, ou que o progresso se faz em oposição à tradição, em resumo, todos os que levam ao delírio, as miragens de uma absurda filosofia da evolução, recomendo-lhes ler São Vicente de Lerins no seu Commonitorium e estudar um pouco mais a história da Igreja: dogmas, sacramentos, estruturas fundamentais, vida espiritual, para entrever a diferença essencial que existe entre: “seguir em frente” e “andar enviezado”, ter “idéias avançadas” ou “avançar segundo idéias justas”; resumindo: distinguir entre profectus e permutatio.
5 — Mais do que em tempo de paz, tornou-se útil e salutar meditar com espírito de fé sobre as provações da Igreja. Seríamos talvez tentados a reduzir estas provações às perseguições e ataques vindo do exterior. Ora, os inimigos do interior são geralmente mais temíveis; conhecem melhor os pontos vulneráveis, podem ferir ou envenenar quando menos se espera, o escândalo que provocam é bem mais difícil de vencer. Assim, em uma paróquia, um educador anti-religioso, por mais que faça, não conseguirá estragar o povo fiel tão profundamente quanto um padre gozador e modernista. Assim como um simples padre que deixa a batina, ainda que com escândalo, não terá conseqüências tão funestas quanto a incúria ou a traição de um bispo.
De qualquer maneira, é certo que se um bispo trai a fé católica, mesmo sem deixar a batina, impõe à Igreja uma provação muito mais acabrunhadora do que um padre que toma uma mulher e que deixa de oferecer a santa Missa. — Depois disto, é preciso explicar que espécie de provação pode sofrer a Igreja de Jesus Cristo por obra do próprio papa, pelo vigário de Cristo em pessoa? A simples formulação desta pergunta, muitos escondem o rosto e não estão longe de gritar que é blasfêmia. Este pensamento os tortura. Recusam-se a olhar de frente uma provação de tal gravidade. Compreendo seus sentimentos. Não ignoro que uma espécie de vertigem se apodera da alma quanto esta é posta diante de certas iniqüidades. Sinite usque huc (Luc. XX, 51) dizia Jesus agonizante aos três Apóstolos, quando avançava a soldadesca do grande sacerdote aos que vinha para prender Jesus, arrastá-lo ao tribunal e à morte. Ele que é o Padre soberano e eterno. Sinite usque huc; é como se o Senhor dissesse: o escândalo pode atingir até aqui; mas deixai; e segundo minha recomendação: VIGIAI E ORAI POIS O ESPÍRITO ESTÁ PRONTO MAS A CARNE É FRACA. Sinite usque huc: pelo consentimento em beber do cálice Eu vos mereci todas as graças, enquanto vós dormíeis e me deixastes só; obtive particularmente uma graça de força sobrenatural na medida de todas as provas; na medida até mesmo da provação que pode sobrevir à santa Igreja por obra do papa. Tornei-vos capazes de escapar a esta própria vertigem.
A respeito desta provação extraordinária há o que diz a História de Igreja e o que não diz a revelação sobre a Igreja. Pois a revelação sobre a Igreja não diz em parte alguma que os papas não pecarão nunca por negligência, covardia, espírito mundano na guarda e na defesa da tradição apostólica. Sabemos que não pecarão nunca fazendo crer diretamente em uma outra religião: este é o pecado que estão preservados pela natureza de seu cargo. E quando empenham sua autoridade dotada de infalibilidade é o próprio Cristo que nos falará e nos instruirá: este é o privilégio de que são revestidos no momento em que se tornam sucessores de Pedro. Mas se a revelação nos afirma estas prerrogativas do papado não diz em parte alguma que, quando o papa exerce sua autoridade num nível abaixo daquele em que é infalível, ele não poderá fazer o jogo de Satã e favorecer até certo ponto a heresia; também, não está escrito nas Santas Cartas que além de não poder ensinar formalmente uma outra religião, o papa nunca poderá deixar sabotar as condições indispensáveis à defesa da verdadeira religião. Uma tal defecção chega a ser consideravelmente favorecida pelo modernismo.
Assim, a revelação sobre o papa não assegura em parte alguma que o vigário de Cristo não infligirá nunca à Igreja a provação de certos escândalos graves; falo de escândalos graves não só na ordem dos costumes privados, mas também na ordem propriamente religiosa e, se se pode assim dizer, na ordem eclesial da fé e dos costumes. De fato, a história da Igreja nos relata que este gênero de provação vinda por obra do papa não faltou à Igreja, ainda que tenha sido rara e nunca tenha se prolongado em estado agudo. O contrário é que seria surpreendente, quando se constata o pequeno número de papas canonizados depois de Gregório VII, o pequeno número de vigários de Cristo que são invocados e venerados como amigos de Deus, santos de Deus. E o mais surpreendente é que papas que suportaram tormentos cruéis, por exemplo um Pio VI ou um Pio VII, não tenham sido tidos como santos nem pela Vox Ecclesiæ nem pela Vox populi. Se esses pontífices, apesar de terem sofrido duramente por serem papas, não suportaram o sofrimento com tal grau de amor que fossem por isso santos canonizados, como se espantar que outros papas, que consideram seu cargo de um modo mundano, cometam faltas graves, ou imponham à Igreja de Cristo provações particulares temíveis e dilacerantes? Quando se está reduzido ao extremo de ter tais papas, os fiéis, os padres, os bispos que querem viver da Igreja têm o grande cuidado de não somente rezar pelo Pontífice supremo, que é então motivo de grande aflição para a Igreja, mas se apegam, mais do que nunca à tradição apostólica: a tradição dos dogmas, do missal e do ritual; à tradição do progresso interior e ao chamado de todos ao perfeito amor no Cristo.
É aqui que a missão daquele irmão pregador que, entre todos os santos é o que mais diretamente trabalhou para o papado, é aqui que a missão do filho de São Domingos, Vicente Ferrer, é particularmente esclarecedora. Anjo do julgamento, legado a latere Crhisti, fazendo depor um papa depois de ter tido a seu respeito uma infinita paciência, Vicente Ferrer é também, e ao mesmo tempo, o missionário intrépido e cheio de benignidade, transbordante de prodígios e milagres, que anuncia o Evangelho à multidão imensa do povo cristão. Ele traz em seu coração de apóstolo não apenas o pontífice supremo, tão enigmático, tão obstinado, tão duro, mas ainda todo o conjunto do rebanho de Cristo, a multidão dos homens do povo desamparados, a turba magna ex ominibus tribubus et populis et linguis. Vicente compreendeu que o autêntico serviço da Igreja estava longe de ser o cuidado maior do vigário de Cristo; o papa punha em primeiro lugar a satisfação de sua obscura vontade de poder. Mas se, ao menos entre os fiéis, o senso da vida dentro da Igreja podia ser despertado, o cuidado de viver em conformidade com os dogmas e os sacramentos recebidos da tradição apostólica; se um sopro puro e veemente de conversão de oração se desencadeassem enfim sobre a cristandade lânguida e desolada, então, sem dúvida, poderia aparecer um vigário de Cristo que fosse verdadeiramente humilde, tivesse uma consciência cristã de seu cargo supereminente, se preocupasse em exercê-lo o melhor possível, no espírito do Soberano padre. Se o povo cristão reencontrasse uma vida de acordo com a tradição apostólica, então se tornaria impossível ao vigário de Jesus Cristo, quando se tratasse de manter e defender esta tradição, cair em certos desvios por demais profundos, deixar-se envolver em certas cumplicidades com a mentira. Tornar-se-ia necessário que um bom papa ou talvez um papa santo sucedesse sem tardar ao mau papa ou ao papa transviado.
Mas muitos fiéis padres, bispos gostariam que em dias de grande infelicidade, quando a provação chega à Igreja da parte de seu papa, as coisas se ponham em ordem sem que eles tenham de fazer nada ou quase nada. No máximo, aceitam murmurar algumas orações. Hesitam mesmo diante do rosário cotidiano: cinco dezenas cada dia, oferecidas a Nossa Senhora, em honra da vida oculta, da Paixão e da glória de Jesus. Têm muito pouca vontade de se aprofundar na fidelidade à tradição apostólica no que diz respeito aos dogmas, ao missal e ritual, à vida interior (o progresso da vida interior faz, evidentemente, parte da tradição apostólica). Tendo, como fiéis, consentido em ser tíbios, escandalizam-se, no entanto, com que o papa, como papa, não seja, ele tampouco, fervorosíssimo quando se trata de guardar para a Igreja toda a tradição apostólica, quer dizer, cumprir fielmente a missão única que lhe foi confiada. Esta visão das coisas não é justa. Quanto mais necessidade temos de um santo papa, mais devemos começar por colocar nossa vida, com a graça de Deus e guardando a tradição, nas pegadas dos santos. Então o Senhor Jesus acabará por conceder ao rebanho o pastor visível que o rebanho se esforçou por merecer.
À insuficiência e defecção do chefe não acrescentemos nossa negligência particular. Que a tradição apostólica esteja ao menos viva no coração dos fiéis mesmo se, no momento, ela é fraca no coração e nas decisões daquele que é responsável pela Igreja. Então, certamente, o Senhor usará de misericórdia para conosco.
Ainda mais, é preciso para isto que nossa vida interior se refira não ao papa, mas a Jesus Cristo. Nossa vida interior, que inclui evidentemente, as verdades da revelação a respeito do papa, deve se referir puramente ao Soberano Padre, a nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, para sobrepujar os escândalos que sobrevêm à Igreja pelo Papa.
Tal é a lição imortal de São Vicente Ferrer nos tempos apocalípticos de uma das maiores falências do pontífice romano. Mas, com o modernismo, estamos conhecendo provações mais terríveis. Razão a mais imperiosa para vivermos puramente, e em todos os pontos, a tradição apostólica; — em todos os pontos, compreendendo esse ponto capital de que, praticamente, nunca mais se falou depois da morte do padre dominicano Garrigou-Lagrange: a tendência efetiva para a perfeição do amor. E no entanto, na doutrina moral revelada pelo Senhor e transmitida pelo apóstolos, está dito que devemos tender para o amor perfeito, já que a lei do crescimento em Cristo é a própria lei da graça e da caridade que nos unem ao Cristo.
6 — Devemos ainda considerar a transcendência e obscuridade do dogma relativo ao papa: o dogma de um pontífice que é vigário universal de Jesus Cristo e que, no entanto, não está ao abrigo de falhas, até mesmo graves, que podem ser muito perigosas para os súditos. Ora, o dogma do pontífice romano não é , em si mesmo, senão um aspecto do mistério mais fundamental, o da Igreja. Sabemos que duas grandes proposições nos introduzem neste mistério: primeiramente, a Igreja, recrutada entre pecadores, o que somos todos, é no entanto dispensadora infalível da luz e da graça, porque, infalivelmente, do alto dos céus, seu chefe e salvador a anima, a sustenta e a governa; enquanto que, sobre a terra, Ele oferece por ela, seu sacrifício e a alimenta de Sua própria substância. Em seguida, a Igreja, Esposa santa do Senhor Jesus, deve ter parte na cruz, incluindo a cruz da traição pelos seus; — ela não deixa por isso, de ser assistida fortemente em sua estrutura hierárquica, a começar pelo papa, e de ser ardente de caridade; em resumo, permanece em todo tempo bastante pura e santa para ser capaz de participar das provações de seu Esposo, incluindo a traição de certos hierarcas, conservando intacta seu senhorio interior e sua força sobrenatural. A Igreja não será nunca entregue à vertigem.
Se, em nossa vida interior, a verdade cristã a respeito do papa está situada como deve no interior da verdade cristã a respeito da Igreja, venceremos na luz o escândalo da mentira que pode sobrevir à Igreja pelo vigário de Cristo ou pelos sucessores dos apóstolos. Ao menos quanto aos bispos, santa Joana d’Arc é, nisso, um modelo incomparável. Por nossa vez, e segundo nossa fraca medida, tentaremos ser fiéis àquilo que foi uma das graças particulares de santa Joana d’Arc.
7 — Quando pensamos no atual papa (Paulo VI), no modernismo instalado na Igreja, na tradição apostólica, na perseverança nesta tradição, somos cada vez mais reduzidos a só podermos considerar estas questões na oração, implorando instantemente pela Igreja inteira e por aquele que, em nossos dias, conserva nas mãos as chaves do reino dos céus. Ele as conserva em suas mãos, mas delas não faz uso, por assim dizer. Deixa abertas as portas do aprisco que dão para o caminho por onde se aproximam os malfeitores; não fecha as portas protetoras que os seus predecessores tinham mantido invariavelmente trancadas, com fechaduras inquebráveis e cadeados infranqueáveis; algumas vezes até parece abrir o que será para sempre conservado fechado e este é o equívoco do ecumenismo pós-conciliar. Eis-nos reduzidos à necessidade de só pensar na Igreja rezando por ela e pelo papa. É uma bênção. No entanto, pensar na nossa Mãe, pensar na Esposa de Cristo nestas condições de grande piedade, não diminui em nada a resolução de ver claro. Ao menos que esta lucidez indispensável, esta lucidez sem a qual afrouxará toda força, seja penetrada de tanta humildade e doçura que façamos violência ao Soberano Padre para que Ele se apresse em nos socorrer. Deus in adjutorium meum intende, Domine ad adjuvandum me festina. Pedimos-lhe encarregar sua santíssima Mãe, Maria Imaculada, de nos trazer, o mais cedo possível, o remédio eficaz.
Tradução de “Itinérarires”, n° 206 de Júlio Fleichman.
Revista Permanência N° 140-141, Julho-Agosto de 1980.