ESTUDO TEOLÓGICO DAS SAGRAÇÕES EPISCOPAIS DE 1988
“As Sagrações episcopais de Sua Ex.ª Revm.ª D. LEFEBVRE foram necessárias
— apesar do ‘NÃO’ do PAPA”
Parte IV
—
Uma palavra sobre a epiquéia "sine recursu ad Principem" (ou epiquéia
"necessária")
Sobre os princípios alegados nesta segunda parte do nosso estudo, se funda a assim chamada epiquéia "necessária", ou "epiquéia sem recurso ao Superior" ("epikia sine recursu ad Principem") [69] a qual, entendida não em sentido vulgar mas num sentido lato e próprio, identificado com a eqüidade, a forma mais alta da justiça ("a epiquéia a que nós [latinos] chamamos eqüidade" S. Th. II, II, q. 120, a. 1) e é uma virtude concernente precisamente "aos deveres ocorridos em casos particulares fora do comum" (S. Th. II, II, q. 80) e que, por isso, se identificam no direito canônico com as normas sobre a "cessação "ab intrinseco " dá observância da lei num caso particular'' e sobre as "causas escusantes" da observância da lei e da obediência ao Legislador [70].
Escreve Naz que, já para Santo Tomás "como para Aristóteles, a intervenção da
epiquéia é subordinada à existência
dum direito. De fato, em certos casos, a lei perde o seu poder de obrigar
—
assim no caso de ser uma aplicação sua contrária ao bem comum ou ao direito
natural
—
e neste caso não depende do poder do Legislador obrigar"
[71]. E ainda: "Aí há lugar para a epiquéia, porque a
vontade do Legislador ou não pode ou não está obrigada a impor a
aplicação da lei no caso em questão" [72].
A necessidade da qual falamos no caso de D. Lefebvre é precisamente o caso no
qual o Legislador não pode impor a aplicação da lei
tornada, por força das circunstâncias particulares, contrária ao bem comum e ao
direito divino particular e positivo. De sua parte, por estar pressionado por um
preceito natural e positivo, "o súdito não só pode, mas deve observar
a lei, pedindo ou não licença do Superior para isso"
[73]. Com efeito, explica Suarez (que fala justamente do Papa),
"aqui não se trata de interpretar a vontade do Superior, mas o seu poder".
Para conhecê-lo não é necessário nem se deve interrogar o
Superior, mas é lícito servir-se das "regras doutrinais" ou então dos
"princípios da teologia ou do direito" [74], dado
que "se conhece com mais certeza o poder [do Superior], que não é livre, e
por outro lado a sua vontade, que o é" [75]. Por
isso o súdito, examinadas prudentemente as circunstâncias e certificado das
"regras doutrinais" ou então dos "princípios da teologia ou do direito"
que excede o poder do Legislador [é "ultra potestatem legislatoris"
[76] de obrigar a observância da lei com grave
prejuízo de tantas almas e que obedecer em tal caso seria "malum et
peccatum" [77], pode, ou antes não se deve ater à
lei e à ordem "propria auctoritate" [78], "ex
proprio arbitrio" [79] e, com conseqüência disso,
por própria iniciativa, "sine recursu ad Principem" [80],
ou seja, sem nenhuma dispensa ou aprovação do 5uperior. "E a razão é
—
escreve Suarez
—
que, neste caso, a autoridade do Superior não pode ter nenhum efeito;
de fato, mesmo quando ele quisesse que o súdito, depois de recorrer a ele,
observasse a lei, este não poderia obedecer-lhe
porque é preciso obedecer a Deus antes que aos homens e, sendo assim, é fora
de propósito ("impertinens ") pedir a permissão" [81].
Para voltar ao nosso exemplo, seria o caso da mulher que diante da grave
necessidade dos filhos, não é preciso o consentimento do marido para cumprir o
seu dever de suplência e mesmo se o marido lho proibisse, não se lhe deveria
obedecer e, por isso, é descabido, sabendo ser ele contrário, pedir-lhe
consentimento para aquilo.
Suarez, ao se perguntar se o perigo de dano (próprio ou alheio) escusa da
obediência, responde sempre que "no Legislador não se presume a vontade de
obrigar em tal caso e, ainda que
houvesse, não seria eficaz (et, quamvis illam haberet esset inefficax).
[...]. E nisto concordam todos os doutores que tratam da obediência e das leis"
[82].
Portanto, "quando consta com certeza que a lei, numa circunstância
particular, se tornou injusta ou
contrária a outro preceito ou virtude que obriga com maior força, então a
lei cessa de obrigar e, por própria iniciativa se pode não observar sem
recurso ao Superior" [83], dado que a lei, no caso, não
poderia "ser observada sem pecado" [84] nem o
Superior poderia, sem pecado, obrigar o súdito a observá-la.
Resta o dever de evitar o escândalo do próximo e, por isso, "se devem
experimentar todos os meios oportunos e humildes com relação ao Sumo Pontífice
[...]. Mas se a humilde insistência não aproveita de modo nenhum, é preciso
reivindicar uma liberdade viril e corajosa" [54]
—
Refutação de outras objeções errôneas
Em vista disso, não é verdade "ser permitido usar da epiquéia somente na
impossibilidade de recorrer ao Legisdador" como se lê na p. 49 do opúsculo
sobre o qual se fala na nota 43 do nosso estudo. Isto vale para a epiquéia no
sentido estrito ou impróprio [85], não no sentido lato e
próprio. No primeiro caso (epiquéia em sentido impróprio ou vulgar), supõe-se
que a autoridade benignamente não queira obrigar, embora
podendo e, assim, se se pode recorrer ao Legislador, existe o dever de
interrogá-lo, dado que se trata da "sua vontade que é livre" (Suarez, cit.).
A epiqüéia em sentido lato e próprio, ao invés, considera aqueles casos em que a
autoridade não pode obrigar, apesar de o querer, e o súdito
se encontra na impossibilidade moral de obedecer, e por isso a epiquéia é
"necessária" (Suarez), e, por conseguinte, o recurso ao Legislador por si
não é obrigatório, ou antes, deve ser omitido, sempre que se preveja que o
Superior obrigaria, não obstante o prejuízo do requerente ou de outrem. Em tal
caso, realmente, não se trata da vontade do Superior, mas do seu "poder, que
não é livre" (Suarez cit.).
Ainda menos é verdade o que se lê noutra publicação: "há "necessidade" por
ser impossível ter contato com o
Superior, o que supõe uma certa urgência na decisão a ser tomada"
[86]. Também isto é verdade para a epiquéia em sentido
impróprio ou vulgar, mas somente em parte, porque a necessidade não nasce da
impossibilidade de ter contato com o Superior ("há necessidade por ser
impossível ter contato com o Superior"), mas existe independentemente desta
e persiste mesmo no eventual "não" do Superior.
Para esclarecer definitivamente a questão, referimos tudo o que, a respeito,
escreve o Pe. Tito Centi O. P.: "Os moralistas procuraram precisar os
critérios a seguir para a aplicação da epiquéia. Em substância, eles a reduzem
aos três casos seguintes: a) quando, numa situação particular, as prescrições da
lei positiva estão em contraste com uma lei superior que ordena o respeito a
interesses mais importantes [epiquéia em sentido próprio]; b)
quando, por motivo de circunstâncias excepcionais a submissão à lei positiva
seria por demais onerosa, sem dela resultar em bem proporcionado ao
sacrifício exigido; c) quando, sem se
tornar má como no primeiro caso, e sem impor um heroísmo
injustificado como no segundo, a
observância da lei positiva vai de encontro a dificuldades especiais e
imprevistas, que a tornam acidentalmente mais dura do que deveria ser, conforme
a intenção do Legislador" [87].
A grave necessidade espiritual de muitos se enquadra no primeiro caso: o da lei
positiva que, em força de circunstâncias extraordinárias, se toma "má",
porque "contrasta com uma lei superior que ordena o respeito a interesses
mais importantes" (epiquéia no sentido próprio). Ao invés, os autores do
opúsculo, como o articulista da supracitada publicação, parecem conhecer apenas
o segundo e o terceiro caso (epiquéia em sentido impróprio ou vulgar), que nada
têm a ver com o caso de D. Lefebvre. No seu primeiro grau, que é o deste último,
a epiquéia vem a coincidir com a eqüidade e, por conseguinte, está conexa com a
impossibilidade moral de obedecer e é, como já se viu, um direito (além de ser
um dever); no segundo e terceiro grau, pelo contrário, a epiquéia se identifica
simplesmente com a clemência ou moderação na aplicação das leis e no exercício
da autoridade [70].
Estamos, verdadeiramente, em circunstâncias extraordinárias, nas quais, por isso
mesmo, é preciso remontar a princípios mais altos do que os aplicados
ordinariamente, que não se apregoam todos os dias e, por conseguinte, são
ignorados por muitos, mas encontradiços, em breve síntese, em qualquer tratado
sobre princípios gerais do direito e da moral. Assim, por exemplo, nas
Institutiones Morales Alphonsianae do Pe. Clément Marc, no n.° 174 se lê:
"Há lugar para a epiquéia todas as vezes que a lei se tornasse prejudicial
ou demasiado onerosa. No primeiro caso [se for prejudicial], e Superior,
realmente não poderia obrigar e, por isso, a epiquéia é necessária [é
o caso que nos interessa]". E ainda no De principiis theologiae moralis
de Noldin (IlI, n.° 199) se lê: "Diz-se que o fim da lei cessa "contrarie"
quando a sua observância é danosa... se o fim da
lei cessa num caso particular e
"contrarie ", a lei cessa [de
obrigar]. A razão é que, se o fim da lei cessa "contrarie", se tem o direito
de usar da epiquéia”.
Enfim, qualquer manual, ilustrando os princípios do direito canônico, trata da
cessação "ab intrinseco" da lei, ou seja, da que deixa de obrigar
pelo simples fato de ser prejudicial naquele caso, e não porque o
Legislador decrete a sua cessação ou conceda a dispensa dela (como sucede na
cessação "ab extrinseco").
Tal é precisamente o caso de necessidade, a qual, por isso, entre as causas que
escusam da observância da lei e da obediência, é a mais forte
[88]. Sobretudo, quando esta necessidade nasce do dever, radicado no próprio
estado de socorrer a muitas almas em grave necessidade espiritual, porque "a
salvação das almas é, para a sociedade espiritual, o fim último para o qual
estão orientadas todas as suas leis e instituições" [16]. A partir do papado
e sem omitir o episcopado.
—
Conclusão
A conclusão do nosso estudo é que, ou se nega o estado de necessidade (o caminho
escolhido pelo Vaticano) e, portanto, a crise atual na Igreja, ou, se ele é
admitido (e aqui remetemos os leitores de Sim
Sim
Não
Não ao artigo Nem cismáticos nem
excomungados de julho de 1988), se deve coerentemente aprovar o gesto de D.
Lefebvre, o qual, por mais extraordinário que possa parecer, deve ser julgado em
relação à situação extraordinária em que foi colocado e na qual, por
isso, "se deve julgar com base em princípios mais altos do que as leis
ordinárias" (S Th. II, II, q. 51, a. 4).
Destes princípios que ilustramos com a necessária brevidade, segue-se:
1 ) que D. Lefebvre tinha sub gravi, ou ao menos ex caritate, o
dever, radicado no seu episcopado, de socorrer as almas que se voltavam a ele
para receber ajuda no atual estado de grave necessidade geral em que não podiam
nem podem esperar socorro dos legítimos Pastores;
2) que ele, por exigência às atuais circunstâncias extraordinárias, tinha o
dever, "dado que tinha para isto o poder de ordem" (S. Th. cit.), também
de sagrar outros Bispos para assegurar, por meio deles, outras ordenações
sacerdotais, aos fiéis em grave e geral necessidade, o que estes têm o direito
de pedir à hierarquia (sã Doutrina e Sacramentos): é, de fato, lícito e devido
ajudar o próximo em necessidade até onde o permitam as próprias possibilidades:
"licet alium iuvare quantum potest fieri" [89];
3) que D. Lefebvre estava na impossibilidade moral e absoluta de obedecer
ao "não" interposto pelo Papa, porque teria pecado por omissão contra o preceito
da caridade, radicado no próprio estado episcopal, preceito "mais grave e
obrigatório" do que a obediência à lei e ao Legislador (Suarez cit.). O
pecado de omissão, realmente, consiste em não dar um bem por qualquer título
devido (no caso: o de caridade, radicado no próprio estado episcopal) quando
seria o tempo de dá-lo (Santo Tomás, S. Th. II, II, q. 79, a. 3 s.), e
qualquer lei que seja cessa de obrigar per se, ou seja, sem dispensa ou
consentimento do Superior, se o dano que dela deriva é geral e muito grande
("lex per se cessare si nocumentum...
esset generale et nimium" (Suarez, De Legibus, L. VI, c. IX, n.° 10);
4) que D. Lefebvre, agindo em estado de grave e geral necessidade das almas,
pressionado por um preceito de direito natural e positivo não negou nem o
Primado de jurisdição do Papa, nem sequer desobedeceu a ele, que "não pode
agir contra o direito divino ou não tê-lo em conta" [55].
Portanto, o fato de ter o Vaticano negado o estado de necessidade não faz
desaparecer a grave necessidade na qual, hoje, se encontram tantas almas, mas
confirma que tal estado carece, ao menos por ora, de qualquer esperança de
socorro da Santa Sé. Portanto, aos autores do opúsculo [43], os quais objetam
que "Santo Eusébio [de Samosata] agiu sem o consentimento do Papa, mas
não contra o consentimento deste", nós respondemos que se trata somente duma
questão de fato, não de princípio: Santo Eusébio não se achou diante do "não"
dum papa que promovia ou favorecia o arianismo e, negando a crise ariana, exigia
o respeito de leis que naquelas circunstâncias extraordinárias teriam privado do
devido socorro às almas postas em grave necessidade espiritual pelos arianos.
Sempre que se nela se encontrasse, também Santo Eusébio deveria ater-se aos
princípios morais acima exigidos e cumprir, não "contra" a negativa do
Papa, mas "não obstante" ela, o gravíssimo dever de caridade imposto ao
próprio episcopado pela grave e geral necessidade das almas.
Os autores do opúsculo ostentam desprezo pelas argumentações de tipo
"iluminista" ou "carismático", pretendendo com isto condenar todos os
que, com simplicidade, fizeram um ato de confiança na retidão e santidade de D.
Lefebvre. Mesmo se estes não têm razão, aquela atitude é teologicamente errada.
Com efeito, Santo Tomás escreve que nas coisas que ocorrem raramente e nas
quais é preciso afastar-se das leis comuns... se exige uma virtude de
julgamento, estribada nestes
princípios mais elevados, denominados gnome, e que implica uma singular
perspicácia de julgamento" (S Th. II, II, q. 51, a. 4). E esta
singular "perspicácia de julgamento"
—
diz Santo Tomás
—
só se pode possuir também em virtude da santidade: "O homem espiritual
recebe, do hábito da caridade, a inclinação para julgar retamente sobre todas as
coisas segundo as leis divinas,
proferindo o seu julgamento mediante o dom da sabedoria, precisamente como o
justo o emite, conforme as regras do direito, mediante a virtude da prudência"
(S. Th. II, II, q. 60, a. 1, ad
2).
Neste estudo, nós nos servimos deste modo de argumentação e nos ativemos
unicamente aos princípios gerais da Teologia e do Direito Canônico, para que
fique claro a todos os que percebem a crise na Igreja e não só aos que conhecem
a santidade de D. Lefebvre, que, nas atuais circunstâncias extraordinárias, além
da "obediência a qualquer custo" (também a Fé è a salvação da própria alma e da
de outrem? Mas tal não seria aquela "aquiescência de asnos e o medo vão dos
coelhos" de que fala Gerson?) e da indemonstrável tese "sedevacantista", se
abre um terceiro caminho: ater-se a tudo quanto a própria Igreja ensina sobre o
"estado de necessidade". Exatamente como fez D. Lefebvre.
(“Sim Sim, Não Não” — n.º 79 — setembro/99)
NOTAS:
[68] P. Palazzini, Dictionarium cit., verbete
obediência
[69] F. Suarez De Legibus L. VI, c. VZII, n.° 1;
[70] V Roberti-Palazzini Dizionario di Teologia morale,
ed. Studium, verbete eqüidade (ou epiquéia); v. também
Aequitas cononica, cit. e Naz Dictionnaire de Droit Canonique verbete
eqüidade;
[71] Naz Dict. cit. epiquéia col. 366;
[72] Ibid.
[73] Suarez De Legibus L. VI, c. VIII, n.° 2;
[74] Ibid. n.° 4;
[75] Ibid. n.° 5;
[76] Suarez De Legibus L. VI, c. VII, n.° 11;
[77] Ibidem L. VI, c. VIII, n.° 8;
[78] Ibidem L. VI, c. VlII, n.° 1;
[79] S. Th. II, q. 80 art.
Único;
[80] Suarez De Legibus L. VI, c. VIII, n.° 1;
[81] Ibid.
[82] Suarez, De statu perfectionis l De voto oboedientiae,
L. X, c. IV, n.° 15
[83] Suarez De Legibus L. VI, c. VIII, n.° I;
[84] Ibid. n.° 2;
[85] Naz Dictionnaire Droit Canonique, verbete
epiquéia, col. 369 ss.;
[86] De Rome et d'ailleurs,
setembro/outubro 1991, p. 17;
[87] La Somma Theologica ed. Salani, vol. XIX, nota l,
p. 274;
[88] Naz Dictionnaire Droit Canonique, verbete
escusa, col. 633;
[89] P. Palazzini Dictionarium cit. verbete iurisdictio suppleta.