Diante dos ataques injustos e absurdos que a Fraternidade São Pio X tem recebido em certos meios, publicamos já há algum tempo, dois artigos explicando porque a existência de tribunais para julgar casos de nulidade de casamento não constitui usurpação de direitos ou ato cismático. Acreditamos que esses dois artigos são suficientes para esclarecer as almas que não se movam pela má-fé. Porém, para os que têm capacidades teológicas mais apuradas, publicamos hoje esta conferência de dom Tissier de Mallerais que analisa os detalhes canônicos de tais tribunais.

Sugerimos a prévia leitura da Encíclica de Pio XI sobre o matrimônio católico, Casti Conubii, traduzida e publicada na nossa rubrica Magistério.

A LEGITIMIDADE e o STATUS de nossos TRIBUNAIS

Conferência dada em 25 de Agosto de 1998 pelo Bispo Tissier de Mallerais
no Seminário de Direito Canônico em Econe, Suíça.


STATUS QUAESTIONIS

As declarações de nulidade de casamento dadas por tribunais eclesiásticos pós-conciliares são freqüentemente duvidosas. Temos nós o direito de prover por esta deficiência por meio dos tribunais que operam na Sociedade São Pio X?

Dom Lefebvre previu a necessidade de criar uma Comissão Canônica, em particular para resolver questões matrimoniais após um julgamento inicial pelo Superior do Distrito da Fraternidade São Pio X. O texto seguinte, tirado de uma carta escrita por ele para o Superior Geral em 15 de Janeiro de 1991, é citada nas Ordonnances da Fraternidade:

“Na medida em que as autoridades atuais de Roma estão imbuídas de ecumenismo e modernismo, e que suas decisões e o novo direito são, como um todo, influenciados por estes falsos princípios, nós devemos instituir autoridades para prover por estas deficiências, autoridades unidas fielmente aos princípios da Tradição Católica e do Direito Católico. É a única forma de permanecer fiel a Nosso Senhor Jesus Cristo, aos Apóstolos, ao Depósito da Fé, transmitido por seus sucessores legítimos, que permaneceram fiéis até o Vaticano II”.

Ele continuava indicando que estas comissões deveriam começar modestamente, conforme a necessidade, e deveriam servir para ajudar os padres a resolver casos difíceis em seus ministérios sagrados. A razão central de nossos tribunais de casamento é, conseqüentemente, que eles são necessários para as almas de nossos fiéis tradicionais.

I. A NOVA LEGISLAÇÃO SOBRE MATRIMÔNIO

O Novo Código de Direito Canônico dá uma nova definição de casamento, Cânon 1055, o1: “totius vitae consortium... ad bonum conjugum atque ad prolis generationem et educationem”. Note a inversão de fins com relação ao ensinamento tradicional e a prioridade dada ao próprio bem dos esposos, conforme a concepção personalista.

O Código de 1917 ensina, ao contrário, a distinção de dois fins subordinados: finis primarius: procreatio et educatio prolis; et finis secundarius: mutuum adiutorium et remedium concupiscentiae. Com a inversão destes fins, o Novo Código clarifica a ambígua declaração do Vaticano II, cf. Gaudium et spes 48, o1: “vinculum sacrum intuitu boni, tum conjugum et prolis, tum societatis...”.

A conseqüência é que o consentimento matrimonial não é mais considerado como um “ius in corpus, perpetuum et exclusivum, in ordine ad actus per se aptos ad prolis generationem” (Cânon 1081, o2), mas como um “totius vitae consortium” (Código de 1983, Cânon 1055, o1), isto é, como uma relação interpessoal caracterizada por certas qualidades, as quais podem torná-la possível, difícil, ou mesmo impossível (cf. Cânon 1057, o2 do Código de 1983).

Não obstante, as qualidades desta relação estão, segundo a concepção tradicional, fora do contrato matrimonial. O Papa Pio XII reafirmou isto, em oposição às novas idéias, quando requisitou que uma sentença da Rota Romana fosse incluída na Acta Apostolicae Sedis (AAS 36 (1944), 172-200). Após recordar os dois fins do casamento, sua hierarquia e sua subordinação, a sentença afirma que:

Um contrato matrimonial pode ser validamente concluído ao considerar o direito principal, ainda que exclua explicitamente direitos secundários... Coabitação e partilha regular de leito e mesa pertencem à integridade da vida individual, mas não à essência da vida conjugal... Vida comum, partilha da residência, cama e mesa não pertencem à substância do casamento... A definição bastante conhecida, ou antes a descrição que Modestinus deu de casamento — Casamento é a união de um homem e uma mulher, consortium totius vitae et communicatio iuris divini et humani — lista ao mesmo tempo elementos que o constituem essencialmente e outros que são sua conseqüência natural, sem que nenhuma ordem ou dependência entre eles esteja clara. Por isto não se pode, a partir desta conhecida descrição de casamento, entender seus fins, o que só pode ser feito com prudência e com as distinções necessárias. A cessão de direito a este tipo de ajuda mútua, não é necessariamente requerida para que se contraia casamento validamente...”

Está claro que, se o “totius vitae consortium” entra no objeto do contrato matrimonial, aqueles defeitos que tornam a comunhão da vida entre os esposos impossível desde o início, também invalidam o pacto matrimonial.

É certamente verdadeiro que a Igreja pode, por lei positiva, estabelecer novos impedimentos ao casamento. Porém, estas mudanças nas leis não significam mudança na substância do sacramento do matrimônio, e determinam mui precisamente as circunstâncias que tornam alguém inapto para ingressar em um contrato matrimonial, a ponto de ser fácil fazer um julgamento na presença de tais impedimentos, sem temor de incorrer em abusos. Mas isto é exatamente o que não ocorre aqui, pois há mudança na concepção da substância do sacramento, expondo-o a todo tipo de abusos.

Os três exemplos seguintes são tirados do Código de Direito Canônico de 1983:  

1.      Cânon 1095, °2: "Sunt incapaces matrimonium contrahendi....qui laborant gravi defectu discretionis judicii circa iura et officia matrimonialia essentialia mutuo tradenda et acceptanda". Isto se opõe ao ensinamento tradicional, segundo o qual existem apenas duas razões para a nulidade do casamento, provindas ambas de um defeito na inteligência:

a) Ignorância de que o casamento é “uma sociedade permanente entre um homem e uma mulher para engendrar filhos” (Cânon 1082, °1), o que não se presume após a puberdade.  

b) Erro na unidade ou indissolubilidade do casamento, se o determina a vontade (Cf. Cânon 1099 do Código de 1983, que codifica a jurisprudência tradicional neste ponto).

Enquanto o ensinamento tradicional é simples e claro, o defeito de julgamento inadequado do Novo Código — isto é, de imaturidade de julgamento — necessariamente está relacionado com o efetivo cumprimento pessoal e interpessoal das obrigações essenciais do casamento, o que está fora do objeto tradicional do contrato matrimonial, e antes concerne ao aspecto subjetivo do laço matrimonial. É certamente verdade que a crescente imaturidade da juventude moderna freqüentemente torna seus matrimônios imprudentes e de improvável duração. Mas estabelecer uma incapacidade de matrimônio com base na imaturidade é invocar uma interpretação personalista e subjetiva do contrato matrimonial, e abrir as portas aos abusos.  

2.      Cânon 1095, °3: "Sunt incapaces matrimonium contrahendi...qui ob causas naturae psychicae obligationes matrimonii essentiales assumere non valent".

A única incapacidade física que o ensinamento tradicional da Igreja reconhece é a de impotência (Cânon 1068, °1), porque torna impossível a cessão do "ius in corpus in ordine ad actus per se aptos ...(Cânon 1081, °2). A única incapacidade mental é amentia ou dementia, a qual torna um sujeito radicalmente incapaz de entrar em um contrato (cf. Cânon 1081, °1: "inter personas iure habiles").

Sem dúvida, existem hoje muitos casos de desequilíbrio, devidos, em larga parte, à destruição da família, o que torna uma permanente união matrimonial uma coisa improvável. Mas quem pode determinar o grau de desequilíbrio que torna o casamento radicalmente impossível? O próprio Papa João Paulo II tem tido de recordar aos canonistas que tais desordens psicológicas, para invalidar o matrimônio, têm de ser “uma forma grave de anomalia que... tem de arruinar substancialmente a capacidade de entendimento e/ou desejo do nubente” (Alocução à Rota Romana, 5 de Fevereiro de 1987; AAS 79 (1987), 1457). Apesar desta nota, o Cânon, °3 segue como uma porta aberta aos abusos.  

3.      Cânon 1098: "Qui matrimonium init deceptus dolo, ad obtinendum consensum patrato, circa aliquam alterius partis qualitatem, quae suapte natura consortium vitae conjugalis graviter perturbare potest, invalide contrahit".

Até o Código de 1983, o dolo jamais fora aceito como razão para anulação de casamento, e isto para proteger a permanência do laço conjugal. No entanto, os autores admitem que a Igreja poderia introduzir em sua lei positiva o dolo como razão de anulação, especialmente se o dolo dissesse respeito a algo necessário ao objeto primário do casamento, tal como o bonum prolis (i.e., se um dos esposos deliberadamente escondesse o fato de ser estéril).

Mas o Cânon 1098 do código de 1983 é muito mais abrangente que isso, e inclui dolos tais como ocultação de alcoolismo, dependência de drogas ou mesmo temperamento agressivo, os quais poderiam tornar a vida em comum impossível. A inspiração personalista deste novo cânon é bastante evidente e é tal que nós não a podemos aceitar. Tampouco cabe a nós reformulá-lo em uma clave Católica.  

Infelizmente, 95% das declarações de nulidade feitas por tribunais pós-conciliares se baseiam no Cânon 1095. Nós temos de considerar estes julgamentos como nulos e vácuos. “Divórcios Católicos”, costuma-se dizer, tão fácil é obter julgamento favorável em virtude deste Cânon. 

Mui freqüentemente — mesmo quando existem bases reais para estabelecer a nulidade, mas de difícil comprovação — o tribunal conciliar optará por uma declaração de nulidade, em virtude do Cânon 1095, como uma resolução prática. Em seguida nos dizem, então, que tal matrimônio é verdadeiramente nulo e vácuo, ainda quando o julgamento é defeituoso. Por que não simplesmente tirar proveito de um tal julgamento mesmo se incorreto? A isto devemos responder que uma opinião individual não é suficiente e não é de maior proveito que um julgamento inválido. Tem de haver um julgamento válido em um tribunal que dê ciência pública que uma tal pessoa está livre para casar.

 

II. QUE DEVEM FAZER OS CATÓLICOS TRADICIONAIS?

1.      Eles não têm o direito de recorrer a tribunais eclesiásticos conciliares, pois isto representaria grave risco de receber uma declaração de nulidade inválida. Qualquer matrimônio subseqüente significaria viver em pecado e seria, efetivamente, um concubinato canônico.

2.      Eles não podem, para se casar de novo, julgar eles mesmos a nulidade de seu casamento, ou simplesmente se satisfazerem com a opinião de um padre amigo, pois o matrimônio é questão de bem público. Do contrário, abriríamos as portas para o subjetivismo e para a desordem; diminuiríamos os laços matrimoniais e aumentaríamos ainda mais a confusão e o escândalo.  

3.      Eles têm, por justiça, o direito de estarem certos da validade do sacramento que recebem em um segundo casamento, e, pelo mesmo motivo, têm o direito de estarem certos da validade do julgamento de nulidade. Eles têm, portanto, o direito de se proteger contra os erros personalistas que invalidem tais sentenças. Se nós não protegermos estes direitos, quem o fará?

4.      Padres e bispos zelosos têm o dever de defender e proteger o laço matrimonial que se encontra ameaçado pela nova legislação. Como podemos nós cumprir com este dever? Os fiéis, não tendo a quem recorrer, estão em estado de necessidade, e seus padres e bispos têm o dever de ajudá-los. Nesta situação, nossa Comissão Canônica, fundada nos princípios gerais de direito que governa a vida da Igreja, tem os poderes de suplência para julgar casos matrimoniais.

 

III. A BASE DOUTRINAL DE NOSSOS PODERES DE SUPLÊNCIA

  1. Canôn 20 (1983 Cód., Cânon 19): Quando não há determinação legal para um caso particular, então ele tem de ser resolvido pela aplicação da regra “a legibus latis in similibus; a generalibus iuris principiis cum aequitate canonica servatis; iurisprudentia et praxi Curiae Romanae; communi constantique doctorum sententia".

    Wernz-Widal o explica: "Ius ergo suppletorium est ius applicandum in particularibus casibus, cum circa illud non habeatur in codice praescriptum quod peculiari illi casui sit applicandum" (no. 180).

  1. Existem três formas de aplicar este princípio:  

    Consulta de situações símiles, segundo o princípio da analogia legis (Wernz-Vidal, no. 181): "per quam iuris dispositio pro aliis casibus applicatur in casu simili de quo lex non disponit.". Aqui o caso similar no Código é o da impossibilidade de recorrer ao bispo a fim de dispensar de um impedimento de lei eclesiástica. Em perigo de morte ou quando omnia parata sunt ad nuptias o pároco ou confessor pode prescindir de recorrer ao bispo (Cânones 1044 & 1045). Isto significa que a Igreja os supre com jurisdição ad casum.

    Costume ou jurisprudência da Cúria Romana: uma resposta da Comissão para a Interpretação do Código dada em 29 de Julho de 1942 (AAS, 34, 241) nos permite estender a disposição do Cânon 1045 para o caso de necessidade urgente ou quando há “periculum in mora” (cf. Cânon 81).

    Epikeia e a opinião dos doutores no que diz respeito ao Cânon 1043 et sq. É expressa por Capello no tratado De Sacramentis, III, no. 199: “Si finis legis esset contrarie pro communitate, i.e. si damnum commune inde sequatur, lex non urget, quia merito censetur suspendi ex benigna mentis legislatoris interpretatione". Desse modo, está suspensa a obrigação legal de recorrer a tribunais pós-conciliares. No entanto, a obrigação de recorrer a tribunais verdadeiramente Católicos não está suspensa.

  1. Tudo isso levado em consideração, concluímos que nossa Comissão Canônica — no caso presente de impossibilidade moral de recorrer a tribunais pós-conciliares — tem o direito de julgar casos matrimoniais. Se a Santa Sé não fosse tão modernista quanto os tribunais, nos daria este poder por Equidade Canônica.

Com efeito, é mais grave dispensar de um impedimento dirimente em virtude do Cânon 1045 — pois isto modifica a condição de alguém, tornando-a capaz de contrair matrimônio — que fazer uma declaração de nulidade do casamento. Pois tal declaração não muda, com efeito, a condição de uma pessoa, mas apenas faz uma declaração sobre a condição em que a pessoa já se encontrava ab initio, i.e., desde o início do casamento. Este é, conseqüentemente, apenas um poder de jurisdição para fazer declarações. Se, portanto, o poder de jurisdição nos dá autoridade para dispensar em certos casos, quanto mais não nos dará autoridade para fazer uma simples declaração de nulidade. 

IV. O EXERCÍCIO DO DIREITO DE JULGAR CASOS MATRIMONIAIS.

    Uma vez que nossa jurisdição é apenas uma jurisdição de suplência, ela tem as seguintes propriedades:

1.      Ela não é habitual, mas exercida ad casum, per modum actus. Conseqüentemente, nossos tribunais não se reúnem de modo habitual e seus membros não são nomeados ad universas causas, mas apenas a cada vez que necessário ad hoc casum. Assim é, mesmo se, por facilidade prática e para manter competência e consistência, são freqüentemente ou sempre nomeados os mesmos juízes e defensores do laço matrimonial.

2.      Ela não é territorial, mas pessoal.  

3.      Ela depende da necessidade dos fiéis, e, conseqüentemente, apenas durará enquanto durar a necessidade comum. Ela continuaria mesmo se o impossível ocorresse e nós encontrássemos um ou outro tribunal para julgar casos matrimoniais unicamente de acordo com as normas tradicionais. Pois, neste caso, a necessidade comum persistiria.  

4.      É uma jurisdição verdadeira, e não uma abstenção da obrigação de receber um julgamento da Igreja. Conseqüentemente, nós temos o poder e o dever de pronunciar sentenças verdadeiras, que têm potestatem ligandi vel solvendi. Elas, conseqüentemente, são impostas obrigatoriamente aos fiéis que as requerem. A razão próxima para isso é que nós temos de ser capazes de dizer aos fiéis o que eles têm de fazer para salvar suas almas — quod debent servare

    Nossos julgamentos não são, conseqüentemente, apenas opiniões privadas, pois não é possível que estas sejam suficientes quando o bem público está envolvido, como ocorre a cada caso no qual o laço matrimonial é examinado. A fim de dirimir a dúvida, nossos tribunais têm de ter autoridade em foro externo.

5.      Esta jurisdição de suplência não usurpa nenhuma autoridade Papal  de direito divino. Esta questão poderia apenas surgir quando nossos julgamentos em terceira instância substituem o julgamento da Rota Romana, que age em nome do Papa quando julga como um tribunal de terceira instância. No entanto, isto não é uma usurpação do poder do Papa de direito divino, uma vez que a reserva desta terceira instância ao Papa não é senão uma lei eclesiástica.

6.     Finalmente, nossos julgamentos, como todos nossos atos de jurisdição de suplência, bem como as próprias consagrações de 1988, terão um dia de ser confirmadas pela Santa Sé.

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