1ª PARTE
Exposição do sistema e sua divisão
E
para procedermos com ordem em tão abstrusa matéria, convém notar que cada
modernista representa e quase compendia em si muitos personagens, isto é, o de
filósofo, o de crente, o de teólogo, o de historiador, o de crítico, o de
apologista, o de reformador; os quais personagens todos, um por um, cumpre bem
os distinga todo aquele que quiser devidamente conhecer o seu sistema e penetrar
nos princípios e nas conseqüências das suas doutrinas.
O modernista filósofo
Começando pelo filósofo, cumpre saber que todo o fundamento da
filosofia religiosa dos modernistas assenta sobre a doutrina, que chamamos agnosticismo.
Por força desta doutrina, a razão humana fica inteiramente reduzida à
consideração dos fenômenos, isto é,
só das coisas perceptíveis e pelo modo como são perceptíveis; nem tem
ela direito nem aptidão para transpor estes limites. E daí segue que não é
dado à razão elevar-se a Deus, nem conceder-lhe a existência, nem mesmo por
intermédio dos seres visíveis. Segue-se, portanto, que Deus não pode ser de
maneira alguma objeto direto da ciência; e também com relação à história,
não pode servir de assunto histórico. Postas estas premissas, todos percebem
com clareza qual não deve ser a sorte da teologia
natural, dos motivos de credibilidade,
da revelação externa. Tudo isto os
modernistas rejeitam e atribuem ao intelectualismo,
que chamam ridículo sistema, morto já há muito tempo. Nem os abala ter a
Igreja condenado formalmente erros tão monstruosos. Pois que, de fato, o Concílio
Vaticano I assim definiu;
Se alguém disser que o Deus, único e verdadeiro, criador e Senhor
nosso, por meio das coisas criadas não pode ser conhecido com certeza pela luz
natural da razão humana, seja anátema (De Revel. Cân. 1);
e também:
Se alguém disser que não é possível ou não convém que, por divina
revelação, seja o homem instruído acerca de Deus e do culto que lhe é
devido, seja anátema (Ibid. Cân. 2); e, finalmente:
Se alguém disser que a divina revelação não pode tornar-se crível
por manifestações externas, e que por isto os homens não devem ser movidos à
fé senão exclusivamente pela interna experiência ou inspiração privada,
seja anátema (De Fide, Cân. 3).
De que modo porém os modernistas passam do agnosticismo, que é puro estado de ignorância, para o ateísmo científico e histórico que, ao contrário, é estado de positiva negação, e por isso, com que lógica, do não saber se Deus interveio ou não na história do gênero humano, passam a tudo explicar na mesma história, pondo Deus de parte, como se na realidade não tivesse intervindo, quem o souber que o explique.
Há entretanto para eles uma coisa fixa e determinada, que é o dever ser atéia a ciência a par da história, em cujas raias não haja lugar senão para os fenômenos, repelido de uma vez, Deus e tudo o que é divino. E dessa absurdíssima doutrina ver-se-á, dentro em pouco, que coisas seremos obrigados a deduzir a respeito da augusta Pessoa de Cristo, dos mistérios e da sua vida e morte, da sua ressurreição e ascensão ao céu.
Este agnosticismo, porém, na doutrina dos modernistas, não constitui senão a parte negativa; a positiva acha-se toda na imanência vital.
Eis aqui o modo como eles passam de uma parte a outra. A religião, quer a natural quer a sobrenatural, é mister seja explicada como qualquer outro fato. Ora, destruída a teologia natural, impedido o acesso à revelação ao rejeitar os motivos de credibilidade, é claro que se não pode procurar fora do homem essa explicação. Deve-se, pois, procurar no mesmo homem; e visto que a religião não é de fato senão uma forma da vida, a sua explicação se deve achar mesmo na vida do homem. Daqui procede o princípio da imanência religiosa. Demais, a primeira moção, por assim dizer, de todo fenômeno vital, deve sempre ser atribuída a uma necessidade; os primórdios, porém, falando mais especialmente da vida, devem ser atribuídos a um movimento do coração, que se chama sentimento. Por conseguinte, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade.
Esta necessidade das causas divinas não se fazendo sentir no homem senão em certas e especiais circunstâncias, não pode de per si pertencer ao âmbito da consciência; oculta-se (porém), primeiro abaixo da consciência, ou, como dizem com vocábulo tirado da filosofia moderna, na subconsciência, onde a sua raiz fica também oculta e incompreensível. Se alguém, contudo lhes perguntar de que modo essa necessidade da divindade, que o homem sente em si mesmo, torna-se religião, será esta a resposta dos modernistas: a ciência e a história, dizem eles, acham-se fechadas entre dois termos: um externo, que é o mundo visível; outro interno, que é a consciência. Chegados a um ou outro destes dois termos, não se pode ir mais adiante; além destes dois limites acha-se o incognoscível. Diante deste incognoscível, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas visíveis, seja que ele se ache oculto na subconsciência do homem, a necessidade de um quê divino, sem nenhum ato prévio da inteligência, como o quer o fideísmo, gera no ânimo já inclinado um certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina e assim, de certa maneira, une o homem com Deus. É precisamente a este sentimento que os modernistas dão o nome de fé e tem-no como princípio de religião.
Nem acaba aí o filosofar, ou melhor, o desatinar desses homens. Pois, nesse mesmo sentimento eles não encontram unicamente a fé; mas, com a fé e na mesma fé, do modo como a entendem, sustentam que também se acha a revelação. E que é o que mais se pode exigir para a revelação? Já não será talvez revelação, ou pelo menos princípio de revelação, aquele sentimento religioso, que se manifesta na consciência? Ou também o mesmo Deus a manifestar-se às almas, embora um tanto confusamente, no mesmo sentimento religioso? eles ainda acrescentam mais, dizendo que, sendo Deus ao mesmo tempo objeto e causa da fé, essa revelação é de Deus como objeto e também provém de Deus como causa; isto é, tem a Deus ao mesmo tempo como revelante e revelado. Segue-se daqui, Veneráveis Irmãos, a absurda afirmação dos modernistas, segundo a qual toda a religião, sob diverso aspecto, é igualmente natural e sobrenatural. Segue-se daqui a promíscua significação que dão aos termos consciência e revelação. Daqui a lei que dá a consciência religiosa, a par com a revelação, como regra universal, à qual todos se devem sujeitar, inclusive a própria autoridade da Igreja, seja quando ensina seja quando legisla em matéria de culto ou disciplina.
Entretanto, em todo este processo donde, segundo os modernistas, resultam a fé e a revelação, deve atender-se principalmente a uma coisa de não pequena importância, pelas conseqüências histórico-críticas, que daí fazem derivar. Aquele Incognoscível, de que falam, não se apresenta à fé como que nu e isolado; mas, ao contrário, intimamente unido a algum fenômeno que, embora pertença ao campo da ciência ou da história, assim mesmo, de certo modo, transpõe os seus limites. Este fenômeno poderá ser um fato qualquer da natureza, contendo em si algum quê de misterioso, ou poderá também ser um homem, cujo talento, cujos atos, cujas palavras parecem nada ter de comum com as leis ordinárias da história. A fé, pois, atraída pelo Incognoscível unido ao fenômeno, apodera-se de todo o mesmo fenômeno e de certo modo o penetra da sua vida. Donde se seguem duas coisas.
A primeira é uma certa transfiguração do fenômeno, por uma espécie de elevação das suas próprias condições, que o torna mais apto, qual matéria, para receber o divino.
A segunda é uma certa desfiguração, resultante de que, tendo a fé subtraído ao fenômeno os seus adjuntos de tempo e de lugar, facilmente lhe atribui aquilo que em realidade não tem; o que particularmente se dá em se tratando de fenômenos de antigas datas, e isto tanto mais quanto mais remotas são elas. Destes dois pressupostos, os modernistas deduzem outros tantos cânones que unidos a um terceiro já deduzido de agnosticismos, constituem a base da crítica histórica. Esclareçamos o fato com um exemplo tirado da pessoa de Jesus Cristo. Na pessoa de Cristo, dizem, a ciência e a história não acham mais do que um homem. Portanto, em virtude do primeiro cânon deduzido do agnosticismo, da história dessa pessoa se deve riscar tudo o que sabe de divino. Ainda mais, por força do segundo cânon, a pessoa histórica de Jesus Cristo foi transfigurado pela fé; logo, convém despojá-la de tudo o que a eleva acima das condições históricas.
Finalmente, a mesma foi desfigurada pela fé, em virtude do terceiro cânon; logo, se devem remover dela as falas, as ações, tudo enfim que não corresponde ao seu caráter, condição e educação, lugar e tempo em que viveu. É em verdade estranho tal modo de raciocinar; contudo é esta a crítica dos modernistas.
O sentimento religioso, que por imanência vital surge dos esconderijos da subconsciência, é pois o gérmen de toda a religião e a razão de tudo o que tem havido e haverá ainda em qualquer religião.
Este mesmo sentimento rudimentar e quase informe a princípio, pouco a pouco, sob o influxo do misterioso princípio que lhe deu origem, tem-se ido aperfeiçoando, a par com o progresso da vida humana, da qual, como já ficou dito, é uma forma.
Temos, pois, assim a origem de toda a religião, até mesmo da sobrenatural; e estas não passam de meras explicações do sentimento religioso. Nem se pense que a católica é excetuada; está no mesmo nível das outras, pois não nasceu senão pelo processo de imanência vital na consciência de Cristo, homem de natureza extremamente privilegiada, como outro não houve nem haverá. Fica-se pasmo em se ouvindo afirmações tão audaciosas e sacrílegas! Entretanto, Veneráveis Irmãos, não é esta linguagem usada temerariamente só pelos incrédulos. Homens católicos, até muitos sacerdotes, afirmaram estas coisas publicamente, e com delírios tais se vangloriam de reformar a Igreja.
Já não se trata aqui do velho erro, que à natureza humana atribuía um quase direito à ordem sobrenatural.
Vai-se muito mais longe ainda; chega-se até a afirmar que a nossa santíssima religião, no homem Jesus Cristo assim como em nós, é fruto inteiramente espontâneo da natureza. Nada pode vir mais a propósito para dar cabo de toda a ordem sobrenatural. Por isto com suma razão o Concílio Vaticano I definiu: Se alguém disser que o homem não pode ser por Deus elevado a conhecimento e perfeição, que supere as forças da natureza, mas por si mesmo pode e deve, com incessante progresso, chegar finalmente a possuir toda a verdade e todo o bem, seja anátema (De Revel Cân. 3).
Até agora porém, Veneráveis Irmãos, não lhes vimos dar nenhum lugar à ação da inteligência. Contudo, segundo as doutrinas dos modernistas, tem ela também a sua parte no ato de fé. Vejamos como.
Naquele sentimento, dizem, de que tantas vezes já se tem falado, precisamente porque é sentimento e não é conhecimento, Deus de fato se apresenta ao homem, mas de modo tão confuso que em nada ou mal se distingue desse mesmo crente. Faz-se, pois, mister lançar algum raio de luz sobre aquele sentimento, de maneira que Deus se apresente fora e distinto do crente. Ora, isto é obra da inteligência, à qual somente cabe o pensar e o analisar, e por meio da qual o homem a princípio traduz em representações mentais os fenômenos de vida, que nele aparecem, e depois os manifesta com expressões verbais.
Segue-se daí esta vulgar expressão dos modernistas: o homem religioso deve pensar à sua fé. – Sobrevindo, pois, a inteligência ao sentimento, inclina-se sobre este, elabora-o todo, a modo de um pintor que ilumina e reanima os traços de um quadro estragado pelo tempo. O paralelo é de um dos mestres do modernismo. Neste trabalho a inteligência procede de dois modos: primeiro, por um ato natural e espontâneo, exprimindo a sua noção por uma proposição simples e vulgar; depois, com reflexão e penetração mais íntima, ou, como dizem, elaborando o seu pensamento, exprime o que pensou com proposições secundárias, se forem finalmente sancionadas pelo supremo magistério da Igreja, constituirão o dogma.
Assim pois, na doutrina dos modernistas, chegamos a um dos pontos mais importantes, que é a origem e mesmo a natureza do dogma. A origem do dogma põem-na eles, pois, naquelas primitivas fórmulas simples que, debaixo de certo aspecto, devem considerar-se como essenciais à fé, pois que a revelação, para ser verdadeiramente tal, requer uma clara aparição de Deus na consciência. O mesmo dogma porém, ao que parece, é propriamente constituído pelas fórmulas secundárias. Mas, para bem se conhecer a natureza do dogma, é preciso primeiro indagar que relações há entre as fórmulas religiosas e o sentimento religioso.
Não haverá dificuldade em o compreender para quem já tiver como certo que estas fórmulas não têm outro fim, senão o de facilitarem ao crente um modo de dar razão da própria fé. De sorte que essas fórmulas são como que umas intermediárias entre o crente e a sua fé; com relação à fé, são expressões inadequadas do seu objeto e pelos modernistas se denominam símbolos; com relação ao crente, reduzem-se a meros instrumentos.
Não é portanto de nenhum modo lícito afirmar que elas exprimem uma verdade absoluta; portanto, como símbolos, são meras imagens de verdade, e portanto devem adaptar-se ao sentimento religioso, enquanto este se refere ao homem; como instrumentos, são veículos de verdade e assim, por sua vez, devem adaptar-se ao homem, enquanto se refere ao sentimento religioso. E, pois que este sentimento, tem por objeto o absoluto, apresenta infinitos aspectos, dos quais pode aparecer, hoje um, amanhã outro e da mesma sorte como aquele que crê pode passar por essas e aquelas condições, segue-se que também as fórmulas, que chamamos dogmas, devem estar sujeitas a iguais vicissitudes, e por isso também a variarem.
Assim pois, temos o caminho aberto à íntima evolução do dogma. Eis aí um acervo de sofismas, que subvertem e destroem toda a religião!
Ousadamente afirmam os modernistas, e isto mesmo se conclui das suas doutrinas, que os dogmas não somente podem, mas positivamente devem evoluir e mudar-se. De fato, entre os pontos principais da sua doutrina, contam também este, que deduzem da imanência vital: as fórmulas religiosas, para que realmente sejam tais e não só meras especulações da inteligência, precisam ser vitais e viver da mesma vida do sentimento religioso. Daí porém não se deve concluir que essas fórmulas, particularmente se forem só imaginárias, sejam formadas a bem desse mesmo sentimento religioso; porquanto nada importa a sua origem, nem o seu número, nem a sua qualidade; segue-se, porém, que o sentimento religioso, embora modificando-as, se houver mister, as torna vitais e fá-las viver de sua própria vida. Em outros termos, é preciso a fórmula primitiva seja aceita e confirmada pelo coração, e que a subseqüente elaboração das fórmulas secundárias seja feita sob a direção do coração. Procede daí que tais fórmulas para serem vitais, hão de ser e ficar adaptadas tanto à fé quanto ao crente. Pelo que, se por qualquer motivo cessar essa adaptação, perdem sua primitiva significação e devem ser mudadas. Ora, sendo assim mutável o valor e a sorte das fórmulas dogmáticas, não é de admirar que os modernistas tanto as escarneçam e desprezem, e que por conseguinte só reconheçam e exaltem o sentimento e a vida religiosa. Por isto, com o maior atrevimento criticam a Igreja acusando-a de caminhar fora da estrada, e de não saber distinguir entre o sentido material das fórmulas e sua significação religiosa e moral, e ainda mais, agarrando-se obstinadamente, mas em vão, a fórmulas falhas de sentido, de deixar a própria religião rolar no abismo. Cegos, na verdade, a conduzirem outros cegos, são esses homens que inchados de orgulhosa ciência, deliram a ponto de perverter o conceito de verdade e o genuíno conceito religioso, divulgando um novo sistema, com o qual, arrastados por desenfreada mania de novidades, não procuram a verdade onde certamente se acha; e, desprezando as santas e apostólicas tradições, apegam-se a doutrinas ocas, fúteis, incertas, reprovadas pela Igreja, com as quais homens estultíssimos julgam fortalecer e sustentar a verdade (Gregório XVI, Encíclica “Singulari Nos” 7 Jul. 1834).
Assim, Veneráveis Irmãos, pensa o modernista como filósofo.