PASCENDI
DOMINICI GREGIS (cont.)
O modernista
crente
Agora,
passando a considerá-lo como crente, se quisermos conhecer de que modo, no modernismo, o
crente difere do filósofo, convém observar que, embora o filósofo reconheça por
objeto da fé a realidade divina,
contudo esta realidade não se acha noutra parte senão na alma do crente, como
objeto de sentimento e afirmação; porém, se ela em si mesma existe ou não
fora daquele sentimento e daquela afirmação, isto não importa ao filósofo.
Se, porém, procurarmos saber que fundamento tem esta asserção do crente,
respondem os modernistas: é a experiência
individual. Com esta afirmação, enquanto na verdade discordam dos
racionalistas, caem na opinião dos protestantes e dos pseudo-místicos.
Eis
como eles o declaram: no sentimento
religioso deve reconhecer-se uma espécie de intuição do coração, que pôs
o homem em contato imediato com a própria realidade
de Deus e lhe infunde tal persuasão da existência dele e da sua ação, tanto
dentro como fora do homem, que excede a força de qualquer persuasão, que a ciência
possa adquirir. Afirmam, portanto, uma verdadeira experiência, capaz de vencer
qualquer experiência racional; e se esta for negada por alguém, como pelos
racionalistas, dizem que isto sucede porque estes não querem pôr-se nas condições
morais que são necessárias para consegui-la. Ora, tal experiência é a que
faz própria e verdadeiramente crente a todo aquele que a conseguir. Quanto
vai dessa à doutrina católica! Já vimos essas idéias condenadas pelo Concílio
Vaticano I. Veremos ainda como, com semelhantes teorias, unidos a outros
erros já mencionados, se abre caminho para o ateísmo. Cumpre, entretanto,
desde já, notar que, posta esta doutrina da experiência
unida à outra do simbolismo, toda
religião, não executada sequer a dos idólatras, deve ser tida por verdadeira.
E na verdade, porque não fora possível o se acharem tais experiências em
qualquer religião? E não poucos presumem que de fato já se as tenha
encontrado. Com que direito, pois, os modernistas negarão a verdade a uma
experiência afirmada, por exemplo, por um maometano? Com que direito reivindicarão experiências
verdadeiras só para os católicos? E os modernistas de fato não negam, ao
contrário, concedem, uns confusa e outros manifestamente, que todas as religiões
são verdadeiras. É claro, porém, que eles não poderiam pensar de outro
modo.
Em
verdade, postos os seus princípios, em que se poderiam porventura fundar para
atribuir falsidade a uma religião
qualquer? Sem dúvida seria por algum destes dois princípios: ou por falsidade
do sentimento religioso, ou por falsidade da fórmula proferida pela
inteligência. Ora, o sentimento religioso, ainda que às vezes menos perfeito,
é sempre o mesmo; e a fórmula intelectual para ser verdadeira basta que
corresponda ao sentimento religioso e ao crente, seja qual for a força do
engenho deste. Quando muito, no conflito entre as diversas religiões, os
modernistas poderão sustentar que a católica tem mais verdade, porque é mais
viva, e merece mais o título de cristã, porque mais completamente corresponde
às origens do cristianismo. A ninguém pode parecer absurdo que estas conseqüências
todas dimanem daquelas premissas. Absurdíssimo é, porém, que
católicos e sacerdotes que, como preferimos crer, têm horror a tão
monstruosas afirmações, se ponham quase em condição de admiti-las. Pois,
tais são os louvores que tributam aos mestres desses erros, tais as homenagens
que publicamente lhes prestam, que facilmente dão a entender que as suas
honras não atingem as pessoas, que talvez de todo não desmereçam, antes, porém,
aos erros, que elas professam às claras, e entre o povo procuram com todos os
esforços propagar.
Há
ainda outra face, além da que já vimos, nesta doutrina da experiência,
de todo contrária à verdade católica. Pois, ela se estende e se aplica à
tradição que a Igreja tem sustentado
até hoje, e a destrói. E com efeito, os modernistas concebem a tradição como
uma comunicação da experiência original,
feita a outrem pela pregação, mediante a fórmula intelectual.
Por
isto a esta fórmula, além do valor representativo, atribuem certa eficácia de
sugestão, tanto naquele que crê, para despertar o sentimento religioso quiçá
entorpecido, e restaurar a experiência de há muito adquirida, como naqueles
que ainda não crêem, para despertar neles, pela primeira vez, o sentimento
religioso e produzir a experiência. Por esta maneira a experiência religiosa
abundantemente se propaga entre os povos: não só entre os existentes, pela
pregação, mas também entre os vindouros, quer pelo livro, quer pela transmissão
oral de uns a outros. Esta comunicação da experiência às vezes lança
raízes e vinga; outras vezes se esteriliza logo e morre. O viver para os
modernistas é prova de verdade; e a razão disto é que verdade e vida para eles
são uma e a mesma coisa. E daqui, mais uma vez, se infere que todas as religiões
existentes são verdadeiras, do contrário já não existiriam.
Levadas
as coisas até este ponto, Veneráveis Irmãos, já temos muito para bem
conhecermos a ordem que os modernistas estabelecem entre a fé e a ciência;
notando-se que neste nome de ciência incluem também a história. Antes de
tudo se deve ter por certo que o objeto de uma é de todo estranho e separado do
objeto de outra. Porquanto a fé unicamente se ocupa de uma coisa, que a ciência
declara ser para si incognoscível.
Segue-se, pois, que é diversa a tarefa de cada uma; a ciência acha-se toda na
realidade dos fenômenos, onde a fé por maneira alguma penetra; a fé, pelo
contrário, ocupa-se da realidade divina, que de todo é desconhecido à ciência.
Conclui-se, portanto, que nunca poderá haver conflito entre a fé e a ciência;
porque, se cada uma se restringir a seu campo, nunca poderão encontrar-se, nem
portanto contradizer-se. Se, entretanto, alguém objetar que no mundo visível
há coisas que também pertencem à fé, como a vida humana de Cristo, responderão
os modernistas negando. E a razão
é que, conquanto tais coisas estejam no número dos fenômenos, todavia,
enquanto viveram pela fé e, no modo já
indicado, foram pela mesma transfiguradas
e desfiguradas, foram subtraídas ao
mundo sensível e passaram a ser matéria do divino. Por este motivo, se ainda
se quisesse saber se Cristo fez verdadeiros milagres e profecias, se
verdadeiramente ressuscitou e subiu ao céu, a ciência agnóstica o negará e a
fé o afirmará; e nem assim haverá luta entre as duas. Nega-o o filósofo como
filósofo, falando a filósofos e considerando Cristo na sua realidade histórica; afirma-o o crente, como crente, falando a
crentes e considerando a vida de Cristo a reviver
pela fé e na fé.
De
muito se enganaria quem, postas estas teorias, se julgasse autorizado a crer que
a ciência e a fé são independentes uma da outra. Por parte da ciência, essa
independência está fora de dúvida; mas, já não é assim por parte da fé,
que não por um só, mas por três motivos, se deve submeter à ciência.
Efetivamente é de notar, em primeiro lugar, que em todo
fato religioso, tirada a realidade
divina e a experiência que o
crente tem da mesma, tudo o mais, e principalmente as fórmulas
religiosas, não sai do campo dos fenômenos; cai portanto sob o domínio da
ciência. Afaste-se embora do mundo o crente, se lhe aprouver; mas, enquanto se
achar no mundo, nunca poderá se furtar, queira-o ou não, às leis, às vistas,
ao juízo da ciência e da história. Ainda mais, embora se tenha dito que
Deus só é objeto da fé, isto entretanto não se deve entender senão da realidade
divina e não da idéia de Deus. Esta
é dependente da ciência; a qual, enquanto se deleita na ordem lógica, também
se eleva até o absoluto e o ideal. É, pois, direito da filosofia ou da ciência
indagar da idéia de Deus, dirigi-la na sua evolução, corrigi-la quando se lhe
misturar qualquer elemento estranho. Fundados nisto é que os modernistas
sustentam que a evolução religiosa deve ser coordenada com a evolução moral
e intelectual; isto é, como ensina um dos seus mestres, deve ser-lhes
subordinada. Deve-se enfim observar que o homem, em si, não suporta um
dualismo, por conseguinte o crente experimenta em si mesmo uma íntima
necessidade de harmonizar de tal sorte a fé com a ciência, que aquela não se
oponha à idéia geral que a ciência forma do universo. Conclui-se, pois, que a
ciência é de todo independente da fé; esta, ao contrário, embora se declame
que é estranha à ciência, deve-lhe submissão. Todas estas coisas, Veneráveis
Irmãos, são diametralmente contrárias ao que o Nosso antecessor Pio IX
ensinava, dizendo (Brev. ad Ep. Wratislaw. 15 jun. 1857): Em
matéria de religião, é dever da filosofia não dominar, mas servir, não
prescrever o que se deve crer, mas aceitá-lo com razoável respeito, não
perscrutar os profundos dos mistérios de Deus, mas piedosa e humildemente venerá-los.
Os modernistas entendem isto às avessas: há, pois, sobeja razão de
aplicar-se-lhes o que outro nosso predecessor, Gregório IX, escrevia de alguns
teólogos do seu tempo: Alguns dentre vós, excessivamente cheios de espírito
de vaidade, com profanas novidades se esforçam por transpor os limites traçados
pelos Santos Padres, curvando à doutrina filosófica dos racionalistas a
interpretação das páginas celestes, não proveito dos ouvintes, mas para dar
mostras do saber...E estes, arrastados por doutrinas diversas, transformam em
cauda a cabeça e obrigam a rainha a servir à escrava (Ep. ad
Magistros theol., Paris, julho de 1223).