PASCENDI DOMINICI GREGIS (cont.)
II
ª PARTE
As
Causas do Modernismo
Para
mais a fundo conhecermos o modernismo e o mais apropriado remédio acharmos para
tão grande mal, cumpre agora, Veneráveis Irmãos, indagar algum tanto das
causas donde se originou e porque se tem desenvolvido. Não há duvidar que a
causa próxima e imediata é a aberração do entendimento. As remotas,
reconhecemo-las duas: o amor de novidades e o orgulho.
O amor de novidades basta por si só para explicar toda a sorte de erros.
Por esta razão o Nosso sábio predecessor Gregório XVI, com toda a verdade
escreveu (Encicl. "Singulari Nos" 7/07/1834): «Muito lamentável é ver até onde se atiram os delírios da razão
humana, quando o homem corre após as novidades e, contra as admoestações de São
Paulo, se
empenha em saber mais do que convém e, confiando demasiado em si, pensa que
deve procurar a verdade fora da Igreja Católica, onde ela se acha sem a menor sombra de erro». Contudo, o orgulho tem muito maior força para arrastar ao erro os
entendimentos; e é o orgulho que, estando na doutrina modernista como em sua própria
casa, aí acha à larga de que se cevar e com que ostentar as suas manifestações.
Efetivamente, o orgulho fá-los confiar tanto em si que se julgam e dão a si
mesmos como regra dos outros. Por orgulho loucamente se gloriam de ser os únicos
que possuem o saber, e dizem desvanecidos e inchados: Nós cá não somos como os outros homens. E, de fato, para o não
serem, abraçam e devaneiam toda a sorte de novidades, até das mais absurdas.
Por orgulho repelem toda a sujeição, e afirmam que a autoridade deve aliar-se
com a liberdade.
Por
orgulho, esquecidos de si mesmos, pensam unicamente em reformar os outros, sem
respeitarem nisto qualquer posição, nem mesmo a suprema autoridade. Para se
chegar ao modernismo não há, com efeito, caminho mais direto do que o orgulho.
Se algum leigo ou também algum sacerdote católico esquecer o preceito da vida
cristã, que nos manda negarmos a nós mesmos para podermos seguir a Cristo, e
se não afastar de seu coração o orgulho, ninguém mais do ele se acha
naturalmente disposto a abraçar o modernismo! – Seja portanto, Veneráveis
Irmãos, o vosso primeiro dever
resistir a esses homens soberbos, ocupá-los nos misteres mais humildes e
obscuros, a fim de serem tanto mais deprimidos
quanto mais se enaltecem, e, postos na ínfima plana, tenham menor campo
a prejudicar. Além disto, por vós mesmos ou pelos reitores dos seminários,
procurai com cuidado conhecer os jovens que se apresentam candidatos às
fileiras do clero; e se algum deles
for de natural orgulhoso, riscai-o resolutamente do número dos
ordinandos. Neste ponto, quisera Deus que se tivesse sempre agido com a vigilância
e fortaleza que era mister!
Passando
das causas morais às que se relacionam com a inteligência, surge sempre a
ignorância. Todos os modernistas que pretendem ser ou parecer doutores na
Igreja, exaltando em voz clamorosa a moderna
filosofia e desdenhando a Escolástica, abraçaram a primeira, iludidos
pelo seu falso brilho, porque, ao ignorarem completamente a segunda, careceram
dos meios convenientes para reconhecerem a confusão das idéias e refutar os
sofismas. É, pois, da aliança da falsa filosofia com a fé que surgiu o seu
sistema, formado de tantos e tamanhos erros.
Quem
dera que eles fossem no entanto menos zelosos e sagazes na propaganda destes
erros! Mas, em vez disto, é tal a sua esperteza, é tão indefeso o seu
trabalho, que deveras causa pesar ver consumirem-se em prejuízo da Igreja
tantas forças, que bem empregadas lhe seriam muito vantajosas. Para conduzirem
os espíritos ao erro, usam de dois meios: removem primeiro os obstáculos, e em
seguida procuram com máxima cautela os ardis que lhes poderão servir, e põem-nos
em prática, incessante e pacientemente. Dentre os obstáculos, três
principalmente se opõem aos seus esforços: o método escolástico de
raciocinar, a autoridade dos Padres com a Tradição, o Magistério eclesiástico.
Tudo isto é para eles objeto de uma luta encarniçada. Por isso, continuamente
escarnecem e desprezam a filosofia e a teologia escolástica. Quer o façam por
ignorância, quer
por temor, quer mais provavelmente por um e outra, o certo é que a mania
da novidade neles se acha aliada com ódio à escolástica; e não há sinal
mais manifesto de que começa alguém a volver-se para o modernismo do que começar
a aborrecer a escolástica. Lembrem-se os modernistas os seus fautores da
condenação que Pio IX infligiu a esta proposição (Syll. prop. 13): «O
método e os princípios com que os antigos doutores escolásticos trataram a
teologia, não condizem mais com as necessidades dos nossos tempos e com os
progressos da ciência».
São também muito astuciosos em desvirtuar a natureza e a eficácia da Tradição,
a fim de privá-la de todo o peso e autoridade. Porém, nós, os católicos,
teremos sempre do nosso lado a autoridade do segundo Concílio de Nicéia, que
condenou «aqueles
que ousam..., à maneira de perversos hereges, desprezar as tradições eclesiásticas
e imaginar qualquer novidade... ou pensar maliciosa e astutamente em destruir o
que quer que seja das legítimas tradições da Igreja católica».
Teremos sempre a profissão do quarto Concílio de Constantinopla: «Professamos,
portanto, conservar e defender as regras que, tanto pelos santos e célebres Apóstolos
quanto pelos Concílios universais e locais, ortodoxos, mesmo por qualquer deíloquo
Padre e Mestre da Igreja, foram dadas à Santa Igreja Católica
e apostólica. Por esta razão os Pontífices Romanos Pio IV e Pio IX
quiseram que se acrescentassem estas palavras à profissão de fé: Creio firmemente e professo as tradições apostólicas e eclesiásticas e todas as demais
determinações e constituições da mesma Igreja. O mesmo juízo que fazem
da Tradição, estendem-no os modernistas também aos santos Padres da Igreja.
Com a maior temeridade, tendo-os embora como muito dignos de toda a veneração,
fazem-nos passar por muito ignorantes da crítica e da história, no que seriam
indesculpáveis, se outros houveram sido os tempos em que viveram. Põem,
finalmente, todo o empenho em diminuir e enfraquecer o magistério eclesiástico,
ora deturpando-lhe sacrilegamente a origem, a natureza, os direitos, ora
repetindo livremente contra
ele as calúnias dos inimigos. À grei dos modernistas quadram estas
palavras que muito a contragosto escreveu Nosso Predecessor: «Para
atirarem sobre a mística Esposa de Jesus Cristo, que é verdadeira luz, o
desprezo e o ódio, os filhos das trevas tomaram o costume de deprimi-la em público
com uma insensata calúnia e, trocando a noção das coisas e das palavras, de
chamá-la amiga do obscurantismo, sustentáculo da ignorância, inimiga da luz,
da ciência e do progresso (Motu-proprio. “Ut mysticam”,14/03/1891).
Em vista disto, Veneráveis Irmãos, não é para admirar que os católicos,
denodados defensores da Igreja, sejam alvo do ódio mais desapoderado dos
modernistas. Não há injúria que lhes não atirem em rosto; mas de preferência
os chamam ignorantes e obstinados. Se a erudição e o acerto de quem os refuta
os atemoriza, procuram descartá-lo, recorrendo ao silêncio. Este modo de
proceder com os católicos torna-se ainda mais odioso, porque eles ao mesmo
tempo exaltam descompassadamente com incessantes louvores os que seguem o seu
partido; acolhem e batem palmas aos seus livros, eriçados de novidades; e
quanto mais alguém mostra ousadia em destruir as coisas antigas, em rejeitar as
tradições e o magistério eclesiástico, tanto mais encarecem a sua sabedoria;
e por fim, o que a todo espírito reto causa horror, não só elogiam pública e
encarecidamente, mas veneram como mártir quem quer por acaso for condenado pela
Igreja. Movidos e abalados por toda essa celeuma de louvores e impropérios, com
o fito, ou
de não passarem por ignorantes, ou de serem tidos por sábios, os ânimos
juvenis, instigados interiormente pelo orgulho e pelo amor das novidades dão-se
por vencidos e desertam para o modernismo.
Com
isto já chegamos aos artifícios com que os modernistas passam as suas
mercadorias. Que recursos deixam eles de empregar para angariar sectários?
Procuram conseguir cátedras nos seminários e nas Universidades, para
tornarem-se insensivelmente cadeiras de pestilência. Inculcam as suas
doutrinas, talvez disfarçadamente, pregando nas igrejas; expõem-nas mais
claramente nos congressos; introduzem e exaltam-nas nos institutos sociais sob o
próprio nome ou sob o de outrem; publicam livros, jornais, periódicos.
Às
vezes um
mesmo escritor se serve de diversos nomes, para enganar os incautos, simulando
grande número de autores. Numa palavra, pela ação, pela palavra, pela
imprensa, tudo experimentam, de modo as parecerem agitados por uma violenta
febre. Que resultado terão eles alcançado? Infelizmente lamentamos a perda de
grande número de moços, que davam ótimas esperanças de poderem um dia
prestar relevantes serviços à Igreja, atualmente fora do bom caminho.
Lamentamos
esses muitos que, embora não se tenham adiantado tanto, tendo contudo respirado
esse ar infeccionado, já pensam, falam e escrevem com tal liberdade, que em católicos
não assenta bem.
Vemo-los
entre os leigos; vemo-los entre os sacerdotes; e, quem o diria? Vemo-los até no
seio das famílias religiosas. Tratam a Escritura à maneira dos modernistas.
Escrevendo sobre a história tudo o que pode desdourar a Igreja divulgam
cuidadosamente e com disfarçado prazer. Guiados por um certo apriorismo,
procuram sempre desfazer as piedosas tradições populares. Mostram desdenhar as
sagradas relíquias, respeitáveis pela sua antigüidade. Enfim, vivem
preocupados em fazer o mundo falar de suas pessoas; e sabem que isto não será
possível, se disserem as mesmas coisas que sempre se disseram.
Podem
estar eles na persuasão de fazerem coisa agradável a Deus e à Igreja; na
realidade, porém, ofendem gravemente a Deus e à Igreja, se não com suas
obras, de certo com o espírito que os anima e com o auxílio que prestam ao
atrevimento dos modernistas.
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