PASCENDI
DOMINICI GREGIS (cont.)
Já
entre os sequazes do modernismo consideramos o filósofo, o crente e o teólogo;
resta agora examinarmos também o historiador, o crítico e o apologista.
Há
certos modernistas que se atiram a escrever história, que parecem muito
preocupados em não passar por filósofos e chegam até a declarar-se totalmente
alheios aos conhecimentos filosóficos. É isto um rasgo de finíssima
astúcia; para que ninguém os julgue embebidos de preconceitos filosóficos
e assim pareçam, como eles dizem, completamente objetivos.
Em verdade, porém, a sua história ou crítica não fala senão filosofia e as
suas deduções procedem por bom raciocínio dos seus princípios filosóficos.
Isto se faz manifesto a quem refletir com ponderação. Os três primeiros cânones
desses tais historiadores ou críticos são aqueles mesmos princípios que acima
deduzimos dos filósofos, isto é, o agnosticismo,
o teorema da transfiguração das
coisas pela fé, e o outro que Nos pareceu poder denominar da desfiguração.
Vamos examinar-lhes já, em separado, as conseqüências. Segundo o
agnosticismo, a história, bem como a ciência, só trata de fenômenos. Por
conseguinte, tanto Deus como qualquer intervenção divina nas causas humanas
deve ser relegado para a fé, como de sua exclusiva competência. Se tratar,
pois, de uma causa em que intervier duplo elemento, isto é, o divino e o
humano, como Cristo, a Igreja, os Sacramentos e coisas semelhantes, devem
separar-se e discriminar-se tais elementos, de tal modo que o que é humano
passe para a história, o que é divino para a fé. É este o
motivo da distinção que soem fazer os modernistas entre um Cristo da história
e um Cristo da fé, e uma Igreja da história e uma Igreja da fé, entre
Sacramentos da história e Sacramentos da fé, e assim por diante. Em seguida,
esse mesmo elemento humano que
vemos o historiador tomar para si, tal qual se manifesta nos monumentos, deve
ser tido como elevado pela fé, por transfiguração,
acima das condições históricas. Convém, portanto, subtrair-lhe de novo os
acréscimos feitos pela fé, e restituí-los à mesma fé e à história da fé;
Assim
se deve proceder, tratando-se de Jesus Cristo, em tudo o que excede as condições
de homem, seja natural, como a psicologia no-la apresenta, seja conforme as
condições do lugar e tempo em que viveu. Demais, em virtude do terceiro princípio
filosófico, também as coisas que não saem fora das condições da história,
fazem-nas eles como que passar pela joeira, e eliminam, relegando à fé, tudo o
que, a juízo seu não entrar na lógica
dos fatos nem for conforme à índole das pessoas. Assim, querem que Cristo não
tenha dito aquelas coisas que parecem não estar ao alcance do vulgo.
Por
isto eliminam da sua história real e
transportam para a fé todas as alegorias que se encontram nos seus discursos. E
com que critério, perguntamos, se guiam eles nesta escolha? Pela consideração
do caráter do homem, das condições em que se achou a sociedade, da educação,
das circunstâncias de cada fato; em uma palavra, por uma norma que, se bem a
entendemos, se resume em mero subjetivismo.
Isto é, procuram apoderar-se da pessoa de Jesus Cristo e como que revestir-se
dela, e assim lhe atribuem, nem mais nem menos, tudo o que eles mesmos fariam em
circunstâncias idênticas. Assim pois, para concluirmos, a priori, e partindo de
certos princípios que admitem, embora afirmem que os ignoram, na história real
afirmam que Cristo nem foi Deus, nem fez coisa alguma de divino; e como homem,
que ele fez e disse apenas aquilo que eles, referindo-se ao tempo em que viveu,
acham que podia ter feito e dito.
Assim
pois, como a história recebe da filosofia as suas conclusões, assim também a
crítica, por sua vez, as recebe da história. O crítico, seguindo a pista do
historiador, divide todos os documentos em duas partes. Depois de fazer o tríplice
corte acima referido, passa todo o restante para a história real, e entrega a outra parte à história da fé, ou noutros
termos, à história interna. Os
modernistas põem grande empenho em distinguir estas duas histórias; e, note-se
bem, contrapõem à história da fé a história real, enquanto real. Daí resulta, como já vimos, um duplo Cristo; um real, e
outro que, de fato, nunca existiu, mas pertence à fé; um que viveu em
determinado lugar e tempo, outro que se encontra nas piedosas meditações da fé;
tal, por exemplo, é o Cristo descrito no Evangelho de São João, o qual
Evangelho, pretendem-no os modernistas, do princípio ao fim é mera meditação.
Mas
o domínio da filosofia na história ainda vai além. Feita, como dissemos, a
divisão dos documentos em duas partes, apresenta-se de novo o filósofo com o
seu princípio de imanência vital, e
prescreve que tudo o que se acha na história da Igreja deve ser aplicado por emanação vital. E visto como a causa ou condição de qualquer
emanação vital procede de alguma necessidade,
todo acontecimento deve ser a conseqüência de uma necessidade, e deve considerar-se historicamente posterior a ela.
Que
faz então o historiador? Entregue de novo ao estudo dos documentos, tanto nos
livros sacros quanto nos demais, vai formando um catálogo de cada uma das
necessidades que por sua vez se apresentaram à Igreja, quer relativos ao dogma,
quer ao culto ou a outras matérias. Feito este catálogo, passa-o ao crítico.
Este, pois, manuseia os documentos destinados à história da fé e os distribui
de idade em idade, de maneira que correspondam ao elenco que lhe foi dado; e
tudo isto faz tendo sempre em vista o preceito de que o fato é precedido da
necessidade, e a narração, do fato.
Bem
poderia ser que certas partes da Escritura Sagrada, como as Epístolas, também
fossem um fato criado pela necessidade. Seja como for, o certo porém é que não
se pode determinar a idade de nenhum documento, senão pela época em que cada
necessidade se manifestou na Igreja. Convém ainda distinguir entre o começo de
um fato e o seu desenrolar; porquanto, o que pode nascer em um dia, não cresce
senão com o tempo. Esta é a razão pela qual o crítico ainda deve bipartir os
documentos, já dispostos segundo as idades, segregando os que se referem às
origens de um fato dos que pertencem ao seu desenvolvimento, e dispondo de novo
estes últimos em ordem cronológica.
Feito
isto, reaparece o filósofo e
obriga o historiador a conformar os seus estudos com os preceitos e as leis da
evolução. E o historiador, conformando-se, torna a esquadrinhar os documentos;
a procurar com cuidado as circunstâncias em que se achou a Igreja, no correr
dos tempos, as necessidades internas e externas que a impeliram ao progresso, os
obstáculos que se levantaram, numa palavra, tudo o que puder servir para
determinar o modo pelo qual se realizaram as leis da evolução. Concluído este
trabalho, ele esboça em suas linhas principais a história do desenvolvimento
dos fatos. Segue-se-lhe o crítico, que a este esqueleto histórico adapta os
demais documentos.
Escreve-se
então a narração; está completa a história; - mas agora perguntamos, essa
história a quem se deve atribuir? Ao historiador ou ao crítico? A nenhum dos
dois, por certo; mas ao filósofo. Tudo foi exarado por apriorismo, e certamente por um apriorismo
abundante em heresias. São na
verdade para lastimar esses homens, dos quais o Apóstolo disse: Desvairaram em seus pensamentos...gabando-se de sábios, estultos é que
se tornaram (Rom 1,21-22); mas ao mesmo tempo provocam a indignação,
quando acusam a Igreja de corromper os documentos para fazê-los servir aos próprios
interesses. Isto é, atiram sobre a Igreja aquilo de que a própria consciência
manifestamente os acusa.
Dessa
desagregação e da disseminação dos documentos pelo decurso do tempo,
segue-se naturalmente que os livros sagrados não podem absolutamente ser atribuídos
aos autores de quem trazem o nome. E esta é a razão porque os modernistas não
hesitam em afirmar a miúdo que esses livros, especialmente o Pentateuco e os três
primeiros Evangelhos, de uma breve narração primitiva, foram pouco a pouco se
avolumando por acréscimos e interpolações, seja a modo de interpretações
teológicas ou alegóricas, seja a modo de transições para ligarem entre si as
diversas partes.
Noutros
termos mais breves e mais claros, querem que se deva admitir a evolução
vital dos livros sacros, nascida da evolução da fé e correspondente à
mesma. Acrescentam ainda que os sinais de tal evolução aparecem tão
manifestos, que se poderia escrever a história dos mesmos. E chegam mesmo a
escrever essa história, e com tanta persuasão que parecem eles mesmos
ter visto com seus próprios olhos cada um dos escritores, que nos
diversos séculos estenderam a mão sobre a Escritura para ampliá-la. Para
confirmá-lo, recorrem à crítica que chamam textual,
e se esforçam em persuadir que este ou aquele fato, estes ou aqueles dizeres não
se acham no seu lugar, e aduzem ainda outras razões deste mesmo quilate.
Dir-se-ia, na verdade, que se preestabeleceram certos tipos de narrações ou
alocuções que servem de critério certíssimo para julgar se uma coisa está
no seu lugar ou fora dele. Com semelhante método,
julgue quem puder fazê-lo, se eles podem ser capazes de discernir. E no
entanto, quem os ouvir discorrer a respeito dos seus estudos relativos à
Escritura, na qual lograram descobrir tantas incongruências, é levado a crer
que antes deles ninguém manuseou aqueles livros, e que não houve uma infinita
multidão de Doutores, em talento, em sabedoria, e na santidade da vida muito
superiores a eles, que os esquadrinharam em todos os sentidos.
E
para esses sapientíssimos doutores tão longe estavam as Sagradas Escrituras de
ter alguma coisa de repreensível que, ao contrário, quanto mais eles as
aprofundavam, tanto mais agradeciam a Deus ter-se dignado de assim falar aos
homens.
Mas é que os nossos doutores não se entregaram ao estudo da Escrituras com os meios de que se proviram os modernistas! Isto é, não se deixaram amestrar nem guiar por uma filosofia que tem a negação de Deus por ponto de partida, e nem se arvoraram a si mesmos em norma de bem julgar. Parece-nos, pois, já estar bem declarado o método histórico dos modernistas. O filósofo abre o caminho; segue-o o historiador; logo após, por seu turno, a crítica interna e textual. E como é próprio da primeira causa comunicar sua virtude às segundas, claro está que tal crítica não é uma qualquer crítica, mas por direito deve chamar-se agnóstica, imanentista, evolucionista; e por isso quem a professa ou dela se utiliza, professa os erros que se contém nela e se põe em oposição com a doutrina católica. Por esta razão é muito de admirar que tal gênero de crítica possa hoje ter tão grande aceitação entre católicos. Isto assim sucede por dois motivos: primeiro é a aliança íntima que há entre os historiadores e críticos desse gênero, não obstante qualquer diversidade de nacionalidade ou de crenças; o outro é a incrível audácia com que, qualquer parvoíce que algum deles diga, é pelos outros sublimada e decantada como progresso da ciência; se alguém o negar leva a pecha de ignorante; se, porém, o aceitar e defender, será coberto de louvores. Disto se segue que não poucos ficam enganados; entretanto, se melhor considerassem as coisas, ficariam, ao contrário, horrorizados. Desta prepotente imposição dos extraviados, deste incauto assentimento dos pusilânimes produz-se uma certa corrupção de atmosfera, que penetra em toda a parte e difunde o contágio. Mas passemos ao apologista.